Receita para uma bela tarde. Por Antonio Contente
… para, amigo, coroar sua tarde, pegue o grande universo possível de ser percorrido no exíguo daquelas horas. Concentre-se na insofismável verdade de que o eterno é apenas a beleza que foi captada num segundo…
Primeiro, amigo, pegue um tempo absolutamente não sujeito a chuvas ou trovoadas. Delimite-o, então, entre quinze e dezoito horas, justo no instante em que o trinar de um sabiá-laranjeira seja o som perfeito para acariciar a brisa e modular o balanço dos galhos. Que podem, e até devem, roçar pela sua janela. Para dar a impressão que regem os primeiros acordes de uma sinfonia que comece a ser composta naquele momento.
Cace, com o melhor dos seus olhares, uns brancos tufos de nuvens que naveguem pelo azul. Adivinhe, no rastro delas, o caminho dos sonhos e o destino das quimeras. Perpasse, pelas trilhas que foram das estrelas na véspera e o serão dos astros do logo mais, o aceno a ser benzido para que fique pronto no instante da entrega. É nas tardes que se devem fecundar as predisposições às oferendas. É nas tardes que se podem formular os amores gratos. Pois se as manhãs cintilam para as explosões da luz, é no pós-meio-dia que se cria o ninho do aconchego nas tênues claridades namoradas do íntimo do lusco-fusco.
Não se esqueça de bem cuidar do significado das claves. Burile-as, de sol ou de fá, para que, sem precisar de traços em pentagramas, seja escrita a melodia da impressão e do gesto. Que será espargida sobre o silêncio da chegada, no instante em que a porta se abrir para que passos breves circulem em sua sala. Que aos poucos será tomada pelo perpassar da carícia, pelo significado do olhar ternamente azul, pelo intraduzível do beijo, pelo perfume da pequena aurora concentrada no derramar de certos cabelos claros como sois muito, muito matinais. Nenhum outro horário é melhor para as chegadas do que as tardes. Elas são o invólucro mágico que contém, nas dobras do silêncio, o sentido alarido da satisfação. Tardes foram feitas para a entrega da mesma forma que as manhãs o foram para o preparo; e as noites para o descanso do amor cumprido.
Olhe pela sua janela, e, ao percebê-los, ponha as mãos, balançando-as no ar, para a contenção dos suspiros da luz. Nada é tão bom, nas horas que cingem a véspera do crepúsculo, como singrar as nuances meigamente criativas do envolvimento. Note, perceba como, a partir da árvore próxima, ele começa a compor a paisagem que se amplia dentro de nós. Aqui, um toque do amarelo que só Van Gogh conseguiu maturar; ali, um róseo de Manet, um azul de Picasso, um gris com tudo de Lautrec, ou um pequeno turbilhão de rubros hibiscos saídos de uma lúcida alucinação de Gauguin.
… É nas tardes que se podem formular os amores gratos. Pois se as manhãs cintilam para as explosões da luz, é no pós-meio-dia que se cria o ninho do aconchego nas tênues claridades namoradas do íntimo do lusco-fusco…
Para, amigo, coroar sua tarde, pegue o grande universo possível de ser percorrido no exíguo daquelas horas. Concentre-se na insofismável verdade de que o eterno é apenas a beleza que foi captada num segundo. Sinta, a entrar pelas suas narinas, a revelação de que os instantes têm perfumes, o meigo é palpável, e que é o coração que nos dá o melhor tique-taque para percebermos que logo será noite. Quando, afinal, ela vier, busque a janela na qual roçou o galho de árvore que regeu a sinfonia do seu navegar. Recorde, imediatamente, da velha lenda de como deve ser o encontro, a cada escurecer, com a primeira estrela. Rápido, faça o pedido. Se for realizado, tanto melhor. Se não, seja apenas condescendente com esta bem intencionada receita para uma tarde feliz.
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ANTONIO CONTENTE –
Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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