Le rouge et le noir - O capital

O Capital, de Karl Marx 1a. edição – 1867

… Entre os livros banidos há um best-seller assim como um clássico como Laranja Mecânica. Lá estão também quatro obras que, desconfio, entraram no rol por causa do título (ao estilo de Le Rouge et le Noir)…

O Capital, de Karl Marx
1a. edição – 1867

 Contava-se esta historinha nos tempos da censura que nossa ditadura militar nos impôs.

Um sargento é encarregado de vasculhar um centro estudantil e de recolher todo material subversivo. Chegando lá, deu uma olhada na estante dos livros, leu o título de cada um e estancou diante de um exemplar de “Le rouge et le noir”(*), romance do francês Stendhal, publicado em 1830.

Naquela época, diferentemente de hoje, todo cidadão com ginásio completo (escola média) tinha noções básicas de língua francesa. O sargento arregalou os olhos ao ver o livro que ostentava um título ousado. “Como é que é?”, pensou ele, “Vermelho? Só pode ser comunista.” E apreendeu o volume.

Lembrei da historieta ao ler a notícia de que a Secretaria da Educação de Santa Catarina, sem expor seus motivos, mandou recolher uma dezena de títulos das bibliotecas de escolas públicas de todo o estado. A lista das obras é tão heterogênea que parece rol de lavadeira: cuecas, cachecóis e camisas sociais, tudo se mistura lá dentro.

Entre os livros banidos há um best-seller assim como um clássico como Laranja Mecânica. Lá estão também quatro obras que, desconfio, entraram no rol por causa do título (ao estilo de Le Rouge et le Noir): Coração Satânico, Demonologistas – arquivos sobrenaturais, Exorcismo, O Diário do Diabo.

Fica a impressão de que essa proibição foi apenas balão de ensaio. Pela (falta de) lógica da amostragem, a lista integral almejada pelo governo catarinense deve ser quilométrica, capaz de esvaziar todas as bibliotecas escolares do estado.

… “Toda proibição de obra literária é sintoma palpável de que a sociedade está descambando para o autoritarismo, ladeira traiçoeira que se desce fácil mas que dificilmente se sobe sem ajuda externa”…

Criar um index – um repositório de obras banidas – é ideia tão velha quanto a invenção da imprensa. Aliás, é até anterior: na Idade Média, livros manuscritos já eram condenados ao Index Librorum Prohibitorum, o elenco das obras proibidas. É que, naquele tempo, quem mandava era a Igreja. Hoje não é mais assim, mas tem gente que não foi avisada.

Nesse sentido, o governo de SC não está inventando a pólvora. Inventando, não está, mas está acendendo o estopim, manobra arriscada.

Toda proibição de obra literária é sintoma palpável de que a sociedade está descambando para o autoritarismo, ladeira traiçoeira que se desce fácil mas que dificilmente se sobe sem ajuda externa.

Povo atento e escolado, os catarinenses deveriam dar um basta curto e grosso a essa operação de solapamento da formação do espírito crítico da juventude. Que os jovens leitores sejam alertados para trechos obscuros de determinadas obras é boa decisão. Que eles sejam orientados para entender certos livros e analisá-los no contexto da época em que foram escritos é procedimento excelente. Agora, simplesmente esconder textos, como se esconde o pote de geleia dos guris menorzinhos, é medida contraproducente.

Os primeiros autos de fé promovidos pelo regime nazista na Alemanha tiveram lugar já em 1933. Todos sabem como terminou a aventura. Não convém seguir o mesmo caminho.

Um espirituoso poderia até argumentar que, finalmente, chegou o incentivo que faltava para fazer a criançada voltar a ler. De fato, tudo o que é proibido atrai…

Temos que abrir o olho, que com essas coisas não se deve brincar. Essa moda que começou banindo palavras do dicionário e agora se dedica a banir livros da biblioteca é perigosa. Não leva a bom porto.

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(*) Stendhal nunca revelou a razão do título “Le rouge et le noir”. Muitas conjecturas já se fizeram. A mais aceita é a de que o vermelho simboliza o exército, enquanto o preto representa o clero.

 Toda alusão ao comunismo que pudesse ser imputada a Stendhal seria anacrônica. De fato, quando Karl Marx publicou o primeiro volume de sua obra maior, “O Capital”, já fazia vinte e cinco anos que Stendhal havia falecido.

le roue e le noir -livros

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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos,  dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.

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1 thought on “Le rouge et le noir. Por José Horta Manzano

  1. O tal index chamava-se INDEX LIBRORUM PROHIBITORUM. Ela uma coisa terrível, não pelos títulos e conteúdos, mas pela arbitrariedade com que se jogavam lá a literatura colhida, sabe lá onde. Sob o título mal definido de ‘heresias’, quanta coisa não foi destruída! Li recentemente que um processo semelhante, mas sem o título de INDEX parece estar ocorrendo na Alemanha. Sairia ela e entraria outra sem o ‘political background’ da primeira. SC com uma herança cultural fantástica, nem disfarça a tendenciosidade do que faz, vai de ‘index’ mesmo.
    https://www.politico.eu/article/anne-frank-kindergarten-germany-change-name-uproar/

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