Le rouge et le noir. Por José Horta Manzano
… Entre os livros banidos há um best-seller assim como um clássico como Laranja Mecânica. Lá estão também quatro obras que, desconfio, entraram no rol por causa do título (ao estilo de Le Rouge et le Noir)…
Contava-se esta historinha nos tempos da censura que nossa ditadura militar nos impôs.
Um sargento é encarregado de vasculhar um centro estudantil e de recolher todo material subversivo. Chegando lá, deu uma olhada na estante dos livros, leu o título de cada um e estancou diante de um exemplar de “Le rouge et le noir”(*), romance do francês Stendhal, publicado em 1830.
Naquela época, diferentemente de hoje, todo cidadão com ginásio completo (escola média) tinha noções básicas de língua francesa. O sargento arregalou os olhos ao ver o livro que ostentava um título ousado. “Como é que é?”, pensou ele, “Vermelho? Só pode ser comunista.” E apreendeu o volume.
Lembrei da historieta ao ler a notícia de que a Secretaria da Educação de Santa Catarina, sem expor seus motivos, mandou recolher uma dezena de títulos das bibliotecas de escolas públicas de todo o estado. A lista das obras é tão heterogênea que parece rol de lavadeira: cuecas, cachecóis e camisas sociais, tudo se mistura lá dentro.
Entre os livros banidos há um best-seller assim como um clássico como Laranja Mecânica. Lá estão também quatro obras que, desconfio, entraram no rol por causa do título (ao estilo de Le Rouge et le Noir): Coração Satânico, Demonologistas – arquivos sobrenaturais, Exorcismo, O Diário do Diabo.
Fica a impressão de que essa proibição foi apenas balão de ensaio. Pela (falta de) lógica da amostragem, a lista integral almejada pelo governo catarinense deve ser quilométrica, capaz de esvaziar todas as bibliotecas escolares do estado.
… “Toda proibição de obra literária é sintoma palpável de que a sociedade está descambando para o autoritarismo, ladeira traiçoeira que se desce fácil mas que dificilmente se sobe sem ajuda externa”…
Criar um index – um repositório de obras banidas – é ideia tão velha quanto a invenção da imprensa. Aliás, é até anterior: na Idade Média, livros manuscritos já eram condenados ao Index Librorum Prohibitorum, o elenco das obras proibidas. É que, naquele tempo, quem mandava era a Igreja. Hoje não é mais assim, mas tem gente que não foi avisada.
Nesse sentido, o governo de SC não está inventando a pólvora. Inventando, não está, mas está acendendo o estopim, manobra arriscada.
Toda proibição de obra literária é sintoma palpável de que a sociedade está descambando para o autoritarismo, ladeira traiçoeira que se desce fácil mas que dificilmente se sobe sem ajuda externa.
Povo atento e escolado, os catarinenses deveriam dar um basta curto e grosso a essa operação de solapamento da formação do espírito crítico da juventude. Que os jovens leitores sejam alertados para trechos obscuros de determinadas obras é boa decisão. Que eles sejam orientados para entender certos livros e analisá-los no contexto da época em que foram escritos é procedimento excelente. Agora, simplesmente esconder textos, como se esconde o pote de geleia dos guris menorzinhos, é medida contraproducente.
Os primeiros autos de fé promovidos pelo regime nazista na Alemanha tiveram lugar já em 1933. Todos sabem como terminou a aventura. Não convém seguir o mesmo caminho.
Um espirituoso poderia até argumentar que, finalmente, chegou o incentivo que faltava para fazer a criançada voltar a ler. De fato, tudo o que é proibido atrai…
Temos que abrir o olho, que com essas coisas não se deve brincar. Essa moda que começou banindo palavras do dicionário e agora se dedica a banir livros da biblioteca é perigosa. Não leva a bom porto.
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(*) Stendhal nunca revelou a razão do título “Le rouge et le noir”. Muitas conjecturas já se fizeram. A mais aceita é a de que o vermelho simboliza o exército, enquanto o preto representa o clero.
Toda alusão ao comunismo que pudesse ser imputada a Stendhal seria anacrônica. De fato, quando Karl Marx publicou o primeiro volume de sua obra maior, “O Capital”, já fazia vinte e cinco anos que Stendhal havia falecido.
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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos, dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.
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O tal index chamava-se INDEX LIBRORUM PROHIBITORUM. Ela uma coisa terrível, não pelos títulos e conteúdos, mas pela arbitrariedade com que se jogavam lá a literatura colhida, sabe lá onde. Sob o título mal definido de ‘heresias’, quanta coisa não foi destruída! Li recentemente que um processo semelhante, mas sem o título de INDEX parece estar ocorrendo na Alemanha. Sairia ela e entraria outra sem o ‘political background’ da primeira. SC com uma herança cultural fantástica, nem disfarça a tendenciosidade do que faz, vai de ‘index’ mesmo.
https://www.politico.eu/article/anne-frank-kindergarten-germany-change-name-uproar/