Faculdade risonha e franca. Por Antônio Claudio Mariz de Oliveira
…Pude, na Faculdade, tendo em vista, especialmente, o momento histórico, participar intensamente da política acadêmica, unindo-me quanto aos fins, nem sempre quanto aos métodos, a todos os colegas e correntes que se colocavam contra o golpe militar de 1964…
PUBLICADO EM “MARIZALHAS”, MIGALHAS, EDIÇÃO DE 31 DE OUTUBRO DE 2023
Em outros escritos expliquei as minhas ligações afetivas com a Faculdade do Largo de São Francisco, embora tenha me formado na Faculdade Paulista de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Em verdade, todos aqueles que são vocacionados para atuar na área do Direito sofrem uma influência natural do espírito acadêmico das Arcadas, independente da Faculdade em que se formaram.
No meu caso específico há um componente diria que hereditário. O meu pai, Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, formou-se no Largo, foi um ardoroso propagador das tradições da Velha Academia, das histórias de seu tempo como acadêmico e especialmente dos feitos da Turma de 1946, por ele considerada a melhor de todas.
A Paulista de Direito, por sua vez, fincou raízes irremovíveis no meu espírito, nas minhas memórias e no meu afeto. Lá cultivei e aprimorei duas tendências talvez inatas. Uma para a advocacia e a outra para a política, não a política partidária ou eleitoral, mas aquela que objetiva o conhecimento dos problemas sociais e institucionais de maior alcance, com o objetivo de contribuir para a sua solução. Política participativa, como cidadão e profissional do direito.
Pude, na Faculdade, tendo em vista, especialmente, o momento histórico, participar intensamente da política acadêmica, unindo-me quanto aos fins, nem sempre quanto aos métodos, a todos os colegas e correntes que se colocavam contra o golpe militar de 1964.
Foi no antigo convento da Monte Alegre que conheci Ângela, colega de turma com quem me casei; fui aluno de magníficos professores; tornei-me amigo de companheiros de toda a vida; aprendi a conviver com os contrários e tive uma vida acadêmica intensa, diria rica de emoções, momentos de boêmia, esfuziantes alegrias vividas em bares, restaurantes, na sede do Centro Acadêmico e nas memoráveis choupadas no campo de futebol, não mais existente.
Ao lado de uma esmerada formação profissional, de uma intensa atividade de política universitária, a Católica nos proporcionou memoráveis situações hilariantes, decorrentes do convívio com professores, colegas e até com estranhos aos bancos escolares. Desses últimos lembro-me de um simpático andarilho apelidado por nós de “Vermelho”. Perambulava pelas imediações da Faculdade e, por vez, estacionava na sua porta e lá permanecia. Conversando conosco ou discursando, insuflado pelos alunos por ele considerados colegas, Vermelho fazia parte do nosso cotidiano.
Nem sempre o nosso “colega” estava sozinho. Por vezes se apresentava com uma companheira. Jovem, mas judiada por uma vida cruel marcada por infortúnios. No entanto, sentíamos que a atenção que dávamos a ambos os alegrava a ponto de se sentirem integrados na nossa comunidade. Em nome dessa integração certa ocasião resolvemos levar Vermelho e sua companheira para assistir à uma aula de Direito Internacional, ministrada pelo Professor Dalmo Belfort de Matos. Homem de rara cultura, profundo conhecedor dos meandros do direito e das relações internacionais, mas um mestre talvez excessivamente complacente conosco, os seus alunos.
Havia um dia da semana que o Prof. Dalmo ia à feira existente nas imediações da Faculdade e da casa em que morava também ali perto. Passava pela calçada do lado oposto à Escola, empurrando o carrinho com as suas compras. Educado que era, respondia aos inúmeros cumprimentos dos alunos postados do outro lado. Ficava aflito com tantos “bom dia professor” que tirava o seu indefectível chapéu para responder às saudações e se esquecia do carrinho. Este velozmente descia a Monte Alegre, derrubando verduras e frutas que se espalhavam pelo chão. Creio que mudou o seu itinerário, ou desistiu de fazer feira, pois após algumas repetições da cena nunca mais o vimos empurrando o carrinho.
Mas voltamos ao casal de “colegas”. Antes do início da aula do professor Belford de Matos pusemos ambos sentados em carteiras da sala de aulas. Na primeira, a moça e o Vermelho mais atrás. Esse comportou-se bem. Ela, no entanto, assim que teve início a preleção, começou a mexer-se e, mais e pior, não parava de arrumar a sua blusa que por defeito de fabricação não cobria por inteiro os seus seios. Incomodado com aquela cena, repetida várias vezes, o Ilustre e querido Professor não se conteve e sempre mantendo a sua fidalguia disse: “Senhorinha, por favor, comporte-se”. Sem nada entender a “senhorinha” ainda tentava aprumar-se. Dois lúcidos colegas, para evitar maior constrangimento ao professor, a retiraram da aula. Vermelho, no entanto, permaneceu atento até o seu final.
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*Antônio Claudio Mariz de Oliveira é advogado criminalista, da Advocacia Mariz de Oliveira. Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Conselheiro no Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), membro da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e atuou como Secretário de Justiça e Secretário de Segurança Pública de São Paulo nos anos 1990. Foi presidente da AASP e da OAB-SP por duas gestões.