O centro que para mim não morreu. Por Antonio Cláudio Mariz de Oliveira
…valho-me da memória para recordar aspectos marcantes de minha vida ligados à cidade de São Paulo, especificamente ao centro da cidade. As minhas lembranças remontam aos anos cinquenta até início ou meados dos anos dois mil…
PUBLICADO EM “MARIZALHAS”, MIGALHAS, EDIÇÃO DE 17 DE OUTUBRO DE 2023
Eu sou avesso ao conceito corrente entre os mais velhos de que em seu tempo as coisas eram melhores, fluíam com mais facilidade, o convívio entre as pessoas tranquilo, enfim que a vida era melhor para ser vivida. Não concordo. Há aspectos melhores sim, mas há também outros que surgiram para nos beneficiar, com o correr dos anos. Deve-se, em regra, viver o presente com os olhos voltados para o porvir. Viver do passado ou viver no passado em verdade impede a evolução, o aperfeiçoamento, a fruição do que o presente nos oferece. Pode-se sim viver com as lembranças do passado que nos são gratas.
Nesse sentido, valho-me da memória para recordar aspectos marcantes de minha vida ligados à cidade de São Paulo, especificamente ao centro da cidade. As minhas lembranças remontam aos anos cinquenta até início ou meados dos anos dois mil. Dizem respeito não só às experiências lá vividas, mas sobretudo ao que ele representou para a própria da cidade e para a sociedade.
O centro de uma cidade em nosso país sempre representou o local de confluência de pessoas, de concentração do comércio e do acúmulo dos interesses sociais, financeiros e culturais. Compras, negócios e lazer se desenvolviam em lojas, restaurantes, teatros, livrarias, bancos, escritórios, enfim todos os aspectos que materializam as múltiplas atividades de uma população citadina, eram exercidas em suas ruas e praças. Nas cidades do interior ainda as praças do centro possuíam os coretos e eram palco dos tradicionais footings.
As minhas primeiras idas à cidade se deram quando criança. Eu acompanhava minha mãe que ia fazer compras. Lembro-me de uma confeitaria chamada Campo Belo, na rua São Bento, onde tomava ice cream soda. Interessava-me o Mappin, onde também tomávamos lanche. Ficaram em minha memória lojas como a Genin onde minha mãe ia comprar novelos de lã, pois era uma exímia tricoteira. Loja da China e a do Ceilão vendiam de tudo para festas de aniversário, salvo engano ficavam na rua José Bonifácio. Eu a frequentaria muito no futuro, especificamente para ir ao restaurante Itamarati e à livraria Saraiva.
As sapatarias estavam na rua Quintino Bocaiuva. As lojas de tecidos e de livros religiosos na Benjamin Constant. Essa região, denominada centro velho, era bem sortida de restaurantes. Estudantes do Largo de São Francisco, advogados, juízes, promotores, funcionários do fórum e do Tribunal de Justiça, além dos comerciantes compunham a lista de assíduos frequentadores do Corso; do Campestre; do Gouveia; do Mon Ami; do Bar do Zé; do Amarelinho; dos Japoneses da rua da Glória e vizinhança; do Ouro Velho; do primeiro Jardin de Nápoli; do Barsorti; do Guanabara; da Brasileira; do Terraço; e inúmeros outros.
Havia um expressivo número de livrarias. As jurídicas eram a Saraiva; a Forense; a Revista dos Tribunais; a Buchascki e vários sebos que também possuíam livros de Direito. Dentre os sebos havia o Floresta; o Messias; o Orfali e outros localizados na Praça João Mendes e nas ruas Rodrigo Silva e Álvaro Machado. Na mesma Praça João Mendes uma livraria que era muito frequentada por mim chamava-se Livraria do Povo, dirigida por um livreiro que tinha pleno conhecimento dos livros expostos, seus autores, conteúdo e outros detalhes. Um autêntico livreiro.
…O título desse texto reflete uma realidade que me é presente, qual seja a da perpetuidade do centro de São Paulo. Talvez esse apego exista porque o único sentimento que nunca se apossou dos que lá frequentavam era o de solidão. Até hoje, mesmo com ele abandonado e degradado, os que lá estiveram não se sentem sós…
Freitas Bastos, na 15 de novembro, Brasiliense, Teixeira, Livraria Francesa, essas no “Centro Novo” e outras que me escapam atraiam ao centro intelectuais, escritores, poetas e leitores em geral. Aliás, iam ao centro artistas de todas as categorias. Os musicistas compravam instrumentos e partituras na Casa Manon, na 24 de maio. Os pintores se abasteciam de tintas, telas, pinceis na Casa Michelangelo, na Líbero Badaró. A diversidade do centro como o principal centro comercial da cidade atraia os mais variados consumidores. Os chamados “passarinheiros” frequentavam a Casa Orestes, salvo engano esquina de Benjamin Constant com Largo de São Francisco. Os profissionais da medicina se socorriam da Casa Fretin, no Largo do Patriarca com São Bento. Aliás, e me perdoem as lembranças esparsas e desorganizadas, agora me veio à mente na mesma rua São Bento a Casa California, especializada em magníficos sanduiches de linguiça e sucos. Lá pela hora do almoço quando saia do cursinho do Professor Tolosa eu tomava uma batinha de maracujá, com alguns colegas.
Os restaurantes do Centro Velho eram menos sofisticados do que aqueles situados do outro lado da cidade, atravessando o Viaduto do Chá. Paddock; Bistrô ; Baiuca; Bar Redondo; Marcel; Gigeto; Vienense; Churrascaria República; La Casserole; Gato que Ri; Ponto Chic; Bar Brahma; Papai; Salada Paulista. Círculo Italiano.
Em nome da fidelidade ao que havia de mais significativo no centro da cidade, não posso me esquecer dos boêmios e dos locais que frequentavam, além dos bares e das choperias. Refiro-me às boates, aos chamados inferninhos e aos “taxi danças”, instituições hoje inexistentes. Dacar; Clube de Paris; Avenida Danças; Chuá; Paulistano da Rua da Glória; Som de Cristal, eram alguns dos lugares noturnos obrigatórios para jovens e homens maduros. Mas também a eles acorriam os ainda adolescentes que alteravam as suas idades em documentos, para ter a entrada permitida.
A Praça da Sé e vizinhanças representam os locais das minhas mais marcantes recordações do centro da cidade. Depois de haver trabalhado na rua Boa Vista, no 3º Tabelionato de Notas fui para o escritório de meu pai, na Praça nº 399, 5º e depois 6º andar.
O quadrilátero formado pelas Praças da Sé, Clóvis Bevilaqua, João Mendes e Av. da Liberdade reunia o maior número de advogados por metro quadrado talvez de todas as grandes Capitais do mundo. Todos os prédios nelas localizados e mais os das ruas ao redor eram ocupados por escritórios de advocacia. Ademais, os Tribunais de Justiça e os de Alçada, os Foros Cíveis e Comerciais, o Ministério Público e as várias Procuradorias do Estado e do Munícipio funcionavam nas imediações. As sedes da Ordem, da Associação e do Instituto dos Advogados estiveram ali situadas. As ruas eram locais de encontro de bacharéis e de estudantes do Largo de São Francisco. Esse contacto permanente e inevitável dava a todos uma agradável sensação de pertencimento. Sabia-se integrante de uma comunidade.
O título desse texto reflete uma realidade que me é presente, qual seja a da perpetuidade do centro de São Paulo. Talvez esse apego exista porque o único sentimento que nunca se apossou dos que lá frequentavam era o de solidão. Até hoje, mesmo com ele abandonado e degradado, os que lá estiveram não se sentem sós.
ORIGINALMENTE EM: https://www.migalhas.com.br/coluna/marizalhas/395415/o-centro-que-para-mim-nao-morreu
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*Antônio Claudio Mariz de Oliveira é advogado criminalista, da Advocacia Mariz de Oliveira. Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Conselheiro no Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), membro da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e atuou como Secretário de Justiça e Secretário de Segurança Pública de São Paulo nos anos 1990. Foi presidente da AASP e da OAB-SP por duas gestões.