A prova. Por Antonio Contente
Nem se preocupou em pegar. Foi para a sala, preparou um uísque e sentou. Ao dar o primeiro gole, pensou: — E agora sequer tenho mais a prova de que aquele beijo, realmente, aconteceu…
Nos os anos 50, talvez, os arroubos d’amor, as cantadas, fossem mais contidas. Assim é que Lígia sabia que Anzo estava a fim dela; aliás, alimentava isso. Mas sabia também que cursando o último ano na Universidade e o rapaz o primeiro, cada um logo seguiria seu destino. E ele? Certamente não fazia avaliação diferente, porém seguia a declarar paixão a seu jeito. A moça ouvia e sorria; e sorriam mais, e tomavam sucos no bar da esquina ao fim das aulas.
Talvez para fantasiar o clima, morando na mesma São Paulo e se vendo todos os dias deram de se escrever. Ele enviava cartas a ela, ela a ele, e continuavam a tomar sucos no bar da esquina. Da correspondência, nos encontros, não falavam. Cartas eram cartas. Olhos nos olhos eram olhos nos olhos. Até que chegou dezembro.
Com o final do ano letivo, sabendo que Lígia logo sumiria dos seus entornos e, digamos, dos seus anseios, naquela manhã na esquina dos sucos de laranja ele suspirou um “sabe você o que eu lamento”?
— Que não vai mais me ver? – Ela arriscou.
— Não – ele nunca soube como arranjou coragem para dizer – é que você irá embora sem que eu tivesse, ao menos, te dado um beijo.
Ela não respondeu; porém, no dia seguinte, se viram. Lígia o chamou.
— Você sabe onde é o Chalet Suisse?
— Não.
— Mas sabe onde é o Hotel Othon, na ponta do Viaduto do Chá, não sabe? No último andar tem um barzinho, é o chalet de que te falei. Me espera lá, às sete da noite.
Nunca, como naquele dia, Anzo bendisse a boa mesada que recebia do pai, fazendeiro em Araçatuba. Pois pelas informações que buscou entre os colegas ficou sabendo que o lugar era caro. Porém, às seis da tarde, já estava afundado numa poltrona de couro no chalet com um coquetel à sua frente na mesinha. Às sete em ponto Lígia chegou.
É verdade que ficaram calados, se olhando, apenas alguns instantes; mas tal lasquinha de tempo pareceu uma eternidade. Foi a moça que, terminado o gole na limonada, murmurou:
— Depois do nosso convívio nesse ano, achei que não poderíamos ter despedida convencional só com um aperto de mão lá mesmo na faculdade.
Como ao lado deles havia janela aberta para a quente noite de verão, ele apontou:
— Claro, eu sei. E aqui, afinal, estamos mais próximos das estrelas.
Assim, pela primeira vez ela contou que estava noiva, que o casamento já havia sido marcado e que, após a união, o casal iria morar na Inglaterra.
— Sou cinco anos mais velha do que você – ela mostrou nos dedos – com 25 estou na idade de casar…
Ele teve um disparo de coração e tentava, sem grande sucesso, achar palavras para responder. Lígia empurrou o copo e levantou:
— Aqui em cima deste bar, na cobertura, tem um jardinzinho. De lá a gente vê boa parte de São Paulo. Venha.
E, afinal, foi lá. Encostados na amurada, não precisaram falar nada. Ela tomou a iniciativa, dando um longo, quase interminável beijo na boca de Anzo. Isto feito rodou no calcanhar; e se foi. Ao invés de pular lá de cima, ele arrancou o lenço branco do bolso, limpou o baton nos lábios. Sabia que poderia ser ridículo ir atrás dela. Deu tempo acendendo um cigarro que, naquele tempo, não dava câncer. Quando só restava a bagana, desceu.
Corte, para 50 anos depois. Anzo, setentão, estava em sua casa de homem só, aposentado, quando, num domingo, ao abrir o jornal, leu notícia de que o enorme prédio onde, no passado, funcionara o Hotel Othon, havia sido, por estar abandonado, invadido por famílias sem teto. Foi o que bastou para Ligia ressurgir, no Chalet Suisse. Ele levantou em busca da velha mala que, ao longo de todos aqueles anos, de vez em quando abria para pegar e ficar olhando o lenço branco no qual permaneciam rubras, frescas, as marcas de baton. Dormiu com aquilo depositado ali, no criado mudo.
No dia seguinte cedo saiu para compromisso no centro. Ao voltar, meio-dia, encontrou a moça que toda segunda vinha limpar o apartamento e lembrou do lenço que esquecera de guardar. Foi direto ao quarto, e não achou. Chama a faxineira, pergunta se ela guardara:
— Ora, doutor – a criatura deu um risinho – estava todo sujo de baton, eu lavei. Tá no varal da área, secando.
Enzo corre e, de fato, viu que estava lá, branquinho, balançando ao vento. Nem se preocupou em pegar. Foi para a sala, preparou um uísque e sentou. Ao dar o primeiro gole, pensou:
— E agora sequer tenho mais a prova de que aquele beijo, realmente, aconteceu…
Colocou no som um Glenn Miller. “Moonlight Serenade”.
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ANTONIO CONTENTE –
Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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Que maravilha de crônica, amigo querido. Uma de suas melhores, em minha modesta opinião. Grande abraço fraterno 🍷🍷
Outra belíssima crônica cheia de suspense,amigo Antonio.