democracia

Não há democracia quando chegamos a um ponto em que continuamos nessa toada, misturando facções, chacinas, supostos suspeitos, justiçamentos, guerras, ações policiais, noticiário do dia esquecidos à noite, ou melhor, atropelados e abafados por coisas ainda piores, mentiras espalhadas, e especialmente aparentando certa normalidade como se normais os fatos fossem.

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Não há nada de normal. Nada. Não se pode aparentar normalidade quando se insere nos grupos de poder e ação fatos complexos como os que presenciamos. Quatro médicos conceituados, no Rio de Janeiro para participar de um Congresso internacional, atravessam a rua diante do hotel onde se hospedam para aproveitar o beira-mar em um dos quiosques da orla. Um carro para e dele descem três homens que metralham o grupo sentado à mesa. Em 30 segundos três deles estarão mortos, um ferido seriamente, e o Brasil todo abalado. Depois, em menos de 24 horas, caso “resolvido”. Como se a vida pudesse voltar ao normal. Inclusive no próprio quiosque que poucas horas depois recebia alegremente seus clientes, sentados na mesma mesa com marca de tiros e certamente rastros de sangue. Um jornalista até reparou que sobre ela botaram uma garrafa de pimenta, ao lado dos guardanapos. Um requinte incomparável.

Traficantes teriam confundido um dos médicos com um miliciano marcado para morrer porque tinha matado um traficante líder. É guerra na Zona Norte do Rio de Janeiro. Guerra pelo poder e comunidades. Guerras que se espalham pelo país. Todos matam e muito. Polícia, milicianos, traficantes, golpistas. Vou incluir aqui também bolsonaristas inescrupulosos que distribuem o ódio, a ode aos armamentos que se espalharam como nunca, sempre tentando atentar contra o que for contra os seus preceitos, sejam religiosos, estéticos, políticos ou comportamentais. Distribuíram com rapidez recorde sua baba sobre a deputada Sâmia Bomfim, do PSOL, irmã de um dos médicos assassinados. Crueldade e oportunismo.

O caso teve repercussão mundial. Em poucas horas, resolvido. Pela polícia? Um pouco, sim, porque todas foram para lá. Mas, mais do que isso, os culpados pelo ataque não amanheceram o dia seguinte, não viram a luz do outro dia: pena de morte. Da Justiça? Não! Dos próprios traficantes do Comando Vermelho que não perdoaram o erro que tanta atenção chamou e os quatro assassinos trapalhões foram condenados pelo seu “tribunal”. Tribunal? Se reuniram na comunidade, com algum juiz ou autoridade? Não! Estavam presos no complexo penitenciário do Bangu 3 e em videoconferência deram a ordem. Julgaram. Fim.

Você entendeu bem. Vou repetir: decisão tomada em videoconferência de presos dento do Presídio de segurança, onde inclusive deveriam estar funcionando bloqueadores de comunicação. Resultado final: três médicos mortos por engano, mais quatro traficantes, esses com corpos encontrados espalhados na região, punidos imediatamente por terem errado ordens de seus líderes. Sete mortos. Chacina.

Percebe que falamos de milicianos e traficantes como se eles fossem praticamente membros da sociedade? Normalmente, a sociedade civil tem instituições, como a ABI, OAB, entre outras. O poder paralelo não é uma instituição, mas é quem tem dado as cartas, inclusive de dentro das instituições oficiais. Polícia para quem precisa. Os caras sabem exatamente quem manda no quê, onde lideram, seus nomes e até apelidos. Ouvem as suas conversas em investigações lentas, que duram anos, como se tivéssemos todo o tempo do mundo. O erro do ataque aos médicos foi detectado logo porque há um grupo sombra, assim se denominam, que já ouvia há um ano e meio as conversas e ouviu mais essa que percebeu que os médicos foram executados porque um deles era mesmo a cara do miliciano marcado, o tal Taillon, que inclusive, sabe-se, mora ali bem perto, também na Barra da Tijuca.

O reconhecimento facial deles está com defeito, e ainda podemos todos ser confundidos. Eles mandam e desmandam. É Comando Vermelho, Amigos dos Amigos, Terceiro Comando, Primeiro Comando da Capital, PCC, Primeiro Comando Mineiro, Paz, Liberdade e Direito, Comando Norte/Nordeste, Bonde dos Malucos, nomes de facções criminosas espalhadas de Norte a Sul do país – já se conta que há 53 delas. Fora as milícias, grupos paramilitares se espalhando e impondo terror onde se infiltram como cupins, dominando e amedrontando comunidades inteiras.

Não aguento mais ver – neste e a cada caso frequente – a cara de tacho das autoridades, de todos os níveis, com seus terninhos e caras consternadas dizendo que estão sendo tomadas providências, que investigações estão em curso. Inaceitáveis explicações em gerúndios.

Não há democracia que sobreviva a essa insegurança. Não há democracia.

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MarliMARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon).

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