‘Habeas corpus’ em risco, liberdade em perigo. Por Antonio Cláudio Mariz de Oliveira
“Habeas Corpus” – A advocacia reconhece os percalços dos juízes. Mas nenhuma justificativa pode cercear prerrogativas dos impetrantes e os direitos dos jurisdicionados…
PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O ESTADO DE S. PAULO, OPINIÃO, 15 DE JULHO DE 2023
Originado no Direito Romano, o habeas corpus constitui o instrumento de maior efetividade para a garantia da liberdade e dos demais direitos individuais. A agilidade de sua tramitação conduz a uma resposta mais célere do Poder Judiciário a uma coação ilegal que vitimiza um cidadão.
O termo habeas corpus, etimologicamente, significa “toma o corpo”. Ela tem, pois, o sentido de uma obrigação para o autor de uma prisão exibir em juízo o preso para que a prisão seja ou não mantida pelo juiz.
As suas origens encontram-se em Roma, mas o seu arcabouço jurídico lhe foi dado na Inglaterra, especificamente a partir da Carta Magna outorgada pelo rei João Sem Terra, em 1215.
Em nosso país, a Constituição de 1824 não fez nenhuma menção explícita ao instituto, mas consignou que ninguém poderia ser preso sem culpa formada e ordem da “autoridade legítima”, e o preso deveria ser apresentado ao juiz (artigo 179, parágrafo 8.º, incisos VIII e X). Extrai-se dessa redação a admissão implícita do habeas corpus. O Código de Processo Criminal de 1832 e leis posteriores passaram a prevê-lo com a sua denominação.
No Brasil foi elaborada a chamada doutrina brasileira do habeas corpus, segundo a qual qualquer conduta ilegal que violasse um direito poderia ser atacada pelo habeas corpus.
Rui Barbosa já assinalava a sua pertinência quando houvesse violência ou coação ilegal e mesmo ameaça em razão de excesso de autoridade ou conduta arbitrária. Vê-se que ele tinha o escopo de barrar atentados a direitos de naturezas diversas que estivessem sendo impedidos de ser exercidos pelo abuso de poder ou por ilegalidade. Esse ensinamento de Rui foi incorporado na consciência jurídica da Nação, como instrumento para coibir os excessos gerados pelo arbítrio e pelos abusos de autoridades. Como expressão de sua importância, ele passou a ser cognominado de “remédio heroico”.
Em determinada quadra de nossa história houve uma sensível redução da abrangência do habeas corpus, até que, com o golpe militar, ele sofreu importante restrição, com a Emenda Constitucional n.º 5, de 1969. Na década de 70, ao lado do mandado de segurança, o habeas corpus voltou a constituir o esteio de garantia das liberdades individuais.
Atualmente, no entanto, está havendo uma grave mitigação na eficácia do habeas corpus em face do tratamento que a ele está sendo dispensado pelo Judiciário.
Em primeiro lugar, o princípio do colegiado, uma das características essenciais dos julgamentos proferidos pelos tribunais, está sendo violado. Uma vez provocados pelos instrumentos próprios, os desembargadores e os ministros deveriam reexaminar sempre em conjunto as decisões individuais das instâncias inferiores. Os julgamentos coletivos constituem uma das razões da existência dos tribunais.
No entanto, essa regra vem sendo desrespeitada com frequência. Não se pense que o habeas corpus está sendo poupado – não, ao contrário, um surpreendente número de impetrações recebe soluções individuais dos respectivos magistrados relatores. Decidem sem nem sequer dar vista ao Ministério Público. O advogado impetrante, por sua vez, fica impedido de produzir sustentação oral. Muitas e muitas vezes, não tem oportunidade de sequer entregar memoriais, pois a decisão é proferida logo após a distribuição, no mesmo ou em um dos dias seguintes. Quando isso não ocorre, nem sempre se consegue uma entrevista, nem mesmo por videoconferência, antes da decisão monocrática.
Os advogados têm plena noção do acúmulo de processos que assoberbam todos os tribunais pátrios. Sabe-se também que, por tal razão, o número de sustentações orais por sessão de julgamento é excessivo, superior ao que seria razoável para um julgador não padecer de exaustão e de fadiga no final do dia.
Sabe-se, ainda, que a necessidade, a qualidade e a eficiência de algumas sustentações ficam muito aquém dos padrões desejáveis. Por tal razão, está sendo elaborado um projeto de lei para que se organize a advocacia em carreira, como ocorre na maioria dos países. Um critério temporal possibilitaria aos advogados, após uma militância de cinco anos em primeiro grau, trabalhar perante os tribunais localizados nos Estados e, após outros cinco anos, estariam habilitados a exercer a profissão nos tribunais superiores de Brasília.
Como se nota, a advocacia reconhece e compreende os percalços dos magistrados. No entanto, nenhuma justificativa pode cercear as prerrogativas dos impetrantes e os direitos dos jurisdicionados.
Esforços já estão sendo desenvolvidos entre advogados da área criminal e alguns magistrados dos tribunais de Brasília para que soluções sejam encontradas tendo em vista conciliar as suas dificuldades com o sagrado direito dos jurisdicionados de terem as suas postulações integralmente examinadas. Para tanto, as decisões deverão ser obrigatoriamente colegiadas, após a livre manifestação dos advogados nas tribunas, de acordo com os cânones legais.
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*Antônio Claudio Mariz de Oliveira é advogado criminalista, da Advocacia Mariz de Oliveira. Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Conselheiro no Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), membro da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e atuou como Secretário de Justiça e Secretário de Segurança Pública de São Paulo nos anos 1990. Foi presidente da AASP e da OAB-SP por duas gestões.