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Brics: Perigo de ataxia hereditária. Por Aylê-Salassiê Quintão

… a ideia de um BRICS constituído por países de “economia emergentes” surge sedutora, embora alguns membros precisem abandonar os históricos beligerantes, e repensar seus ordenamentos, por não praticarem exatamente a democracia e nem militarem efetivamente na proteção dos direitos dos pobres, da igualdade étnica, de gênero e das minorias,  tipicidades de uma ordem especificamente democrática…

Brics

Nesses últimos 50 anos, o medo, e não o ódio, manteve o mundo longe de um terceiro e grande conflito militar. O período do pós guerra foi marcado, essencialmente, por uma divisão ideológica entre países liberais capitalistas, do Ocidente, liderados pelos Estados Unidos (EUA); e   países de regime comunista, do Leste, capitaneados pela União Soviética (URSS), sob a hegemonia da Rússia. Todos alimentaram-se de discursos de paz e democracia, condições que permitiram a reorganização do mundo. Nas entrelinhas, produziam-se, contudo, novas e sofisticadas armas e introduziam-se estratégias militares inovadoras, que ganharam o apelido de ” Guerra nas Estrelas”.

 No período, a energia atômica tornou-se popular nos campos energético e da medicina, e desenvolveram-se tecnologias espaciais. Com elas, a construção de foguetes e de ogivas nucleares de longo alcance. Era a chamada “corrida armamentista”, implementada com o apoio de grandes empresas. As ameaças viriam agora do céu. Santo Deus!…

Desse cenário iriam surgir novas lideranças políticas, que ignoravam totalmente a morte de 60 milhões de cidadãos, soldados e civis, mulheres, velhos e crianças, durante a segunda guerra: “É apenas uma estatística”, ponderava Josef Stalin, líder da União Soviética (1927-1953).

 Aumentou o temor de mais uma guerra, agora alavancada por uma sofisticada escalada de inovação armamentista, com alto poder de destruição. Coube à ONU – Organização das Nações Unidas e, alternativamente, a expansão do comercio mundial, controlado pela OMC – Organização Mundial do Comércio (ex-GATT), amenizar as pressões no mundo conduzidas sob a influência de países historicamente belicosos. Rússia e EUA cultivavam e cultuavam os novos artefatos de destruição em massa., mantendo uma disputa aberta pela hegemonia no Planeta. Tudo acontecia, contudo, a nível de discurso, acrescido de algumas sabotagens a um e outro. Foi a chamada “Guerra Fria”. Acreditava-se que o crescimento da capacidade armamentista servia para dissuadir às ameaças contenciosas.

O modelo empoderava indivíduos empreendedores e líderes políticos mais ousados, sem compromissos com o passado. Desde 1976, com a morte de Mao Tsé Tung, a China, teve esvaziados os vínculos ortodoxos com o regime comunista. A seguir, em 1991, a URSS se desagregou. Os EUA passaram a capitanear as relações econômicas e sociais no mundo, com a ajuda do Grupo dos Sete (G7), constituído pelos países mais industrializados e de regimes democráticos: – EUA, Inglaterra, Canadá, França, Japão, Alemanha e Itália.  Até por serem excluídas do G7, emergiram no cenário novas lideranças, que passaram a defender uma nova ordem internacional.

Emergiu então um modelo global de intercâmbio e de blocos regionais para administrar os desequilíbrios. O crescimento das populações, a má distribuição de renda e de alimentos , os desperdícios , os serviços básicos insuficientes e as chantagens contra a humanidade (elevação dos preços do petróleo), geraram endividamentos e déficits contábeis que faziam empacar o sonho do desenvolvimento nos países emergentes, até que, em 2009, o BRICS aflorou , reunindo Brasil(B), Rússia(R), Índia(I)e China(C), agregando-se, depois, à sigla um “S”, ao incorporar a África do Sul. Seria um bloco que defendia uma reação explícita à continuidade neocolonial no mundo, propagando uma ação comum para conseguir “paridade” de interesses e frustrações, voltados para corrigir o equilíbrio geopolítico.

 A semana passada (23 e 24 de 2023), foi realizada, em Johanesburgo, na África, a 15a reunião de cúpula (presidentes) do BRICS, sem o Putin, acusado no Ocidente de sequestrar 200 crianças ucranianas. Mas no encontro foram incorporadas, perifericamente, à organização a Arábia Saudita, o Irã, a Argentina, os Emirados, Egito e a Etiópia, formando um espécie de G11. As promessas retóricas de multipolaridade e multiculturalidade atraiu cerca de 80 países, pedindo o ingresso o BRICS. Atropela-se, de certa forma, a Organização das Nações Unidas, que congrega 193 países, o Banco Mundial (com o Banco do BRICS), a Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional, e os bancos de compensação de valores. São instituições que operam em rede no mundo à busca desse equilíbrio geopolítico. Vozes do BRICS entendem diferente. Trata-se de uma acumulação de poder nas mãos de grandes corporações e fundos de investimento, que impõem a submissão dos povos à uma pedagogia colonial remanescente.

Daí que a ideia de um BRICS constituído por países de “economia emergentes” surge sedutora, embora alguns membros precisem abandonar os históricos beligerantes, e repensar seus ordenamentos, por não praticarem exatamente a democracia e nem militarem efetivamente na proteção dos direitos dos pobres, da igualdade étnica, de gênero e das minorias,  tipicidades de uma ordem especificamente democrática.

Dentro do Grupo, justamente os fundadores líderes do BRICS – Rússia e China – obstruem e reprimem em seus países a liberdade de expressão, oprimindo as individualidades, além de não refletirem a vontade popular majoritária.  A democracia nesses países tem mais relativismo do que o anunciado pelo presidente brasileiro. O conceito praticado abriga as conveniências de quem está no Poder ou dos grupos corporativos e ideológicos aos quais está vinculado. Os traços de intolerância social e política são claros. A impressão é a de que os países líderes no bloco, pretenderiam tornarem-se hegemônicos em uma nova ordem mundial sob a gestão do BRICS. Além do empoderamento financeiro (China) e bélico (Rússia), a proposta em discussão é desmontar o sistema de transações e pagamentos correntes, criando uma moeda própria dentro de uma nova ordem. A maioria da reservas internacionais, inclusive dos membros do BRICS, amparam-se no dólar norte-americano, por ambiguamente confiarem na sua estabilidade política e no seu PIB.

 Surgem dúvidas. Seriam absorvidos pelo bloco do BRICS os elevados déficits no balanço de pagamentos dos membros, os seguidos calotes dos argentinos, ou aqueles gerados pelos fortes gastos da Rússia com as guerras?

O Egito está praticamente quebrado. O Brasil tem um enorme déficit em conta corrente. As economias chinesa e russa estão oscilando para baixo. A invasão da Ucrânia teria legitimidade dentro do BRICS, já que os novos membros não tem compromissos com a OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte? São muitas as perguntas. Quem e o que será a referência garantidora das transações comerciais e monetárias dentro do bloco? O euro é desqualificado dentro do bloco. Alternativas já foram pensadas com o marco alemão, o yen japonês, inclusive com o ouro. Não vingaram.

 Nesse cenário de insegurança é difícil encontrar alguém, a curto prazo, com lastro econômico e credibilidade política para assumir a garantia dos pagamentos internacionais com a suposta e nova moeda. As reservas do Brasil, os ativos do BNDES e do Fundo Amazônico estão no bolo. Ninguém fala sobre isso. O pretenso desmonte de instituições internacionais pode trazer complicações não só para o grupo, mas para o mundo inteiro: uma desarrumação geral.

Então, não apenas o regime democrático está sob ameaça. Alguns membros do BRICS mantêm conflitos históricos com a vizinhança – Arábia e Irã, Índia e China e até Rússia e China. A organização poderá, portanto, levar tudo a uma espécie de “ataxia hereditária” – doença do sistema nervoso e cerebral.

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Aylê-Salassié F. Quintão –  Jornalista, professor, doutor em História Cultural. Vive em Brasília. Autor de “Pinguela: a maldição do Vice”. Brasília: Otimismo, 2018

 E autor de Lanternas Flutuantes:

Português –   LANTERNA FLUTUANTES, habitando poeticamente o mundo
Alemão – Schwimmende-laternen-1508  (Ominia Scriptum, Alemanha)
Inglês – Floating Lanterns  
Polonês – Pływające latarnie  – poetycko zamieszkiwać świat  
Tailandês – Loi Kathong (ลอยกระทง) 

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