Cracolândia ou Terrorlândia: a cidade que anda. Por Marli Gonçalves
Cracolândia, este é o assunto de hoje. Aliás, de ontem, de amanhã, de anos a fio, sem solução e só piorando em proporções. Uma “terra” móvel, como imigrantes ao mar, só que aqui no asfalto, debaixo de viadutos, espalhada, sem salvação, nem beira de praia. Nessa terra não há cavaleiros andantes, nem moinhos ou Dulcinéias, embora alucinações por ali sejam constantes. Há um êxodo de seres se movendo para lá e para cá na Terrorlândia.
Difícil descrever com exatidão o que se vê distante nos noticiários, mas nunca tão perto para resguardar a segurança de quem produz imagens. E nenhuma sensação é tão forte quanto ver na realidade, cara a cara, passar por ali e tentar, mesmo com muito medo, deter o olhar naquelas pessoas transtornadas e deformadas que se deslocam pelas ruas do centro de São Paulo.
Atravessam ruas, se jogam diante dos carros, maltrapilhos, cobertores às costas, às vezes sobre as cabeças como tenebrosos fantasmas cinzas. Alguns dançam, com esgares, uma música silenciosa, interna, na viagem alucinada que fazem sob efeito de drogas cada vez mais pesadas, químicas, crack, K-9, misturadas ninguém sabe mais ao quê e que consomem em cachimbos, da forma que as obtêm, em pacotinhos, pinos, comprados com o que roubam, ou com a entrega muitas vezes de suas próprias roupas, com o pouco que ainda lhes resta. Parecem sempre espantar demônios. Seus corpos executam movimentos e posições inimagináveis desenhadas por delírios, expostos em gritos de bocas desdentadas, olhos esbugalhados em rostos definitivamente destruídos.
Homens, mulheres, muitas arrastando crianças, não há gênero possível de ser identificado quando todos viram zumbis e como nos filmes se juntam, quando parecem todos iguais, e são realidade. Não, não são todos iguais. Um olhar atento consegue praticamente identificar os que ali estão há tempos, os que estão no fim e os que chegaram há pouco, diariamente. Basta reparar se ainda tem cabelos, ainda um brilho no olhar, se algo limpo cobre seus corpos, muitas vezes até uma roupa de grife aponta para jovens de classe média que logo se perderão entre outros, ali no meio do lixo, jogados nas sarjetas, no meio fio, andando para lá e para cá desde que foram espalhados como infestação de baratas diante de coturnos.
De um lugar, ocupado desde os anos 90 perto da Praça da Luz, a que se costumou chamar Cracolândia, foram empurrados e se acomodando na Praça Princesa Isabel, Avenida Rio Branco, pontuada pela imponente e eminentemente de ode militar estátua de Duque de Caxias, montado em seu cavalo, atitude e espada em riste. Esculpida por Victor Brecheret, 48 metros de altura, inaugurada em 25 de agosto de 1960 o monumento fará agora 63 anos. Até 2008 era a maior estátua equestre do mundo, uma curiosidade no meio dessa tragédia humanitária diante de nosso nariz. Agora a praça está cercada.
Ali tudo ficou parecido a um enorme campo de guerra, confinado, barracas de sacos plásticos presos, famílias inteiras em situação de rua. E sempre programas e programas de nomes bonitos sendo anunciados governo após governo como solução, um depois do outro, todos fracassados: Recomeço, Braços Abertos, agora o Redenção, esse que tropeça na região há mais de quatro anos, o coturno que tirou todos da Praça e os espalhou, descontrolados, agora o fluxo levando terror ainda maior à região, sujeita a mais invasões e arrastões à luz do dia, assaltos, gangues, mortos, feridos, quebra-quebras: a Terrorlândia nasceu. Diariamente, embates com policiais e comerciantes desesperados com o fim de seus negócios, ruas inteiras dominadas.
Óbvio é que há comando superior, poderoso, na distribuição das drogas, em bancas a céu aberto, e dali só saem presos os peixes pequenos dessa terra maldita. E pululam medidas de mentes “brilhantes”, como a isenção de IPTU desenhada como a cara deles, um quarteirão sim, outro não; uma esquina, como se isso resolvesse algo e não fosse geral a lambança. Entre as tentativas mágicas das autoridades que batem cabeça e cabelo, mais uma. Agora chama, em inglês, “Hub”, o centro de tratamento mais próximo, que era Cratod (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas).
Solução eu não tenho, infelizmente. Nem eles; e a Terrorlândia já é uma das maiores desgraças nacionais, como se ainda estivesse faltando alguma para a gente contar.
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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon).
marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br
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