Luar sobre as dunas. Por Antonio Contente
… Para ancorar, ao anoitecer, numa enseada da Ilha Marieta, ralamente habitada por pescadores. É um lugar mágico, pois guarda área imensa, preservadíssima, tomada por dunas. Que eu não revia há mais de 10 anos. Relativamente perto, fica a cidade balneária de Salinópolis….
Vou lembrar, agora, algo dos dias em que, de vez em quando, me recolho a uma ilha no delta do rio Amazonas, onde possuo um casebre. Mas, antes de tudo, queria logo dizer que gosto muito do “Gaivota Azul”. Trata-se de belo veleiro de dois mastros construído, tábua por tábua, prego por prego, com enorme amor, pelo meu amigo Carlos d’Alba, que, de vez em quando, vem até o esconderijo me ver. Encostada no modesto trapichinho a embarcação exala ar imperial. Recordo que, semanas antes, de manhã, avistei, ao longe, as velas azuis. E o dono do paquete, mal colocou os pés no alpendre de madeira da choupana que me abriga, enfiou o indicador no meu peito. Para dizer que estava ali a fim de me levar a rever o mar onde o rio Amazonas se lança.
Dois dias depois, cedinho, fomos. Para ancorar, ao anoitecer, numa enseada da Ilha Marieta, ralamente habitada por pescadores. É um lugar mágico, pois guarda área imensa, preservadíssima, tomada por dunas. Que eu não revia há mais de 10 anos. Relativamente perto, fica a cidade balneária de Salinópolis.
À noite, me vi entregue à litúrgica solenidade de um derramado luar. Prata sobre prata nos incontáveis montículos de areia, ondas sólidas que o vento esculpe impregnadas de sonhos e lavadas de maus pressentimentos. Há no silêncio da noite o bom da antevéspera, pois a beleza esperada, tanto quanto a pressentida, é a melhor beleza quando posta. Corporifica-se no paradoxal caminhar sem destino, porém com meta. Na sensação de que explodem em nós todos os feriados que guardamos, os domingos permanentes que desejamos para nossas vidas, no selênico envolvimento que as colinas brancas apascentam por terem sido antes apascentadas por ele. O luar sobre as dunas é um mundo de prata construído a partir da amplidão constante do ouro. Presente antes no crepúsculo cor de trigal maduro sobre a selva próxima, exuberante no milagre do pincel que põe o efeito e a metodologia. O ouro se esgarça, se prateia. Pois a lua vem do mar, primeiro em cunha na metade à mostra. Cresce com as ondas de cristas brancas, com os restos de vôos que gaivotas deixaram ao buscar os ninhos, com estrelas em pêndulos que brotam com lampejos de pirilampos pressentidos; e, enfim, escorre. Lá está o traço dela, já redonda, sobre a água em plácida conjuntura. Cintilações que se fundem para a formação do todo, sopro de claridades insipientes, estradas para pessoas que sabem ler a Pedra da Roseta dos crepúsculos e das auroras. É por ali que andam os que sabem dar as mãos. Os que são capazes de conter belezas no facho dissolvido de gotas de orvalho sobre pétalas. Aquele é o caminho dos que andam sobre as águas. Dos deuses da nossa fé e da fé dos nossos semelhantes. Ali a síntese do silêncio é, de repente, um alarido. O reflexo da lua cheia na água é o brado da anunciação. O brado do murmúrio. O brado em beijo. O brado em carícia. O brado em amor.
Sou um ser totalmente encantado por esta hora e este renovado espanto. Ali naquele mundo tão alvo, tão belamente indivisível, moram todos os gestos que me acalentam e todos os chamamentos que me levam. Tenho ali, entre duas imensas dunas que formam um vale, o caminho que percorro na substância da minha espera. Esta é a hora do meu abraço e da minha revelação. Rebrotam no meu rosto as ternuras que ficaram das generosas mãos que me acarinharam. Escorrem dos meus pobres olhos, quase vazados pela exaustão de tantas belezas presenciadas, as circunstâncias que armazenei para a oferenda no altar deste momento.
Vem o vento mais forte com a lua já alta. Levanta a fina camada das dunas, súbita poeira de luz solidificada e movente. As dunas andam, aprendam, as dunas andam! E nas noites prateadas como esta o caminhar é para a construção de castelos. As dunas abrigam vegetação rasteira, aprendam! O pó, depositado nos galhos baixos, retido em folhas de cores dúbias na luz possível, subitamente são estalactites solúveis, pingos de intraduzíveis esmeraldas, e até flores como as dos murucizeiros, pertinentes pepitas. E nas noites de lua há a percepção de vôos. Dos pássaros que ajudam a construir as manhãs; das nuvens muito brancas que luzem nas tardes dos coqueiros com palmas em gestuário de alçar impossível; e do quebranto que nos envolve e conduz.
Agora sei, pela posição da lua, que é noite alta. E esta é a hora em que chegam os meus fantasmas. Em que encontro o lábaro da fé perdida, e sinto ser possível estar à sombra dos galhos dos meus amores pendentes. Toma-me a virtualidade do encanto. E peço insônia para esperar a possibilidade do impossível.
De madrugada, afinal, ando. Busco a faixa de areia onde o mar bate, e redescubro o catador de conchas que há em mim. Pouco adiante, vejo vultos que se movimentam; são os pescadores que, mais do que peixes, colhem suspiros de ondas. Vem a certeza de que tenho amigos que guardam cintilações, e que amo mulheres que retêm a capacidade de transformar sargaços em estrelas.
Na pedra no final da praia, sento. Ao longe, na enseada, como se emergisse das profundezas, avisto a silhueta, com os mastros altos, do “Gaivota Azul”. O lindo barco que me conduziu àquele porto de realidades e memórias.
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ANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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Caro Antônio Contente. Belíssimo texto. Escrito com o cérebro e, principalmente, com o coração. Admirei sua capacidade descritiva. Transportou o leitor para lá.