Um escravo chamado Antonio. Por Antonio Contente
Ao ocorrer a abolição Antonio estava com 38 anos. Mas antes, bem antes, por ser negro forte, bonito, mais para Sidney Poitier do que para Mussum, teve voltados para sua figura vários olhos de pessoas importantes.
Alguns seguidores do chamado “politicamente correto”, faz meia dúzia ou mais de anos, quiseram mudar a data em que se deve comemorar a libertação dos escravos no Brasil, 13 de maio. Assim acabaram por criar o Dia da Consciência Negra, festejado a 20 de novembro. Ocasião em que morreu Zumbi, o líder do Quilombo dos Palmares, em 1695. Pra mim a efeméride da alforria dos cativos é e continuará sendo a tradicional, que lembra a assinatura, em 1888, pela princesa Isabel, do decreto da Abolição. Que chegou tardiamente, aliás, pois fomos um dos últimos países do mundo a obrar em tal direção.
Agora vou logo adiantar que não estou entrando na seara dos historiadores, ao recordar episódio tão marcante da vida nacional. O que me chegou à cabeça, assim sem mais nem menos, ontem, em hora d’ócio, foi episódio ocorrido na redação da Folha de S. Paulo em 1976, quando eu lá trabalhava: de repente, notável rebuliço tomou conta dos coleguinhas, exatamente num 13 de maio, no momento em que certa matéria, saída na Ilustrada, começou a correr de mão em mão nas mesas de abrir e fechar que guardavam, no interior, as velhas e barulhentas máquinas de datilografar. A reportagem de página inteira falava de um negro chamado Antonio, que fora escravo. Na ocasião ele contava a respeitável idade de 126 anos. O que, de resto, apesar de inusual, não resumia o foco principal da matéria. O motivo do meu xará virar assunto num grande jornal, fora outro. Bem mais interessante, como se verá.
Ao ocorrer a abolição Antonio estava com 38 anos. Mas antes, bem antes, por ser negro forte, bonito, mais para Sidney Poitier do que para Mussum, teve voltados para sua figura vários olhos de pessoas importantes. Entre eles os do próprio barão de Campos (de quem era filho com uma escrava angolana) e, acreditem, do imperador D. Pedro II. O reboliço que a reportagem causou na redação é que muitos colegas brandiam as páginas do jornal para exclamações como: “Desse jeito o que mais eu queria na vida era ser escravo”! Como eu ainda não tinha lido o texto, evidentemente tratei de fazê-lo. Para ficar sabendo que o notável personagem fora escolhido não apenas pelo genitor, mas pelo próprio rei, para ser “preto cobridor de escravas”, segundo a designação da época. Ou seja, em linguagem de hoje: a única ocupação do formidável Antonio resumia-se a transar para que mais futuros cativos nascessem. Dedicava, assim, as 24 horas do seu invejável dia a levar para a cama as negras mais saudáveis e mais bonitas. Para os entusiasmados colegas de jornal, ali estava um felizardo.
Bom, naturalmente que isso supõe a necessidade de estatísticas. Então, vamos lá: ao longo do período de sua vida a exercer a exótica (invejável?) atividade, o moço, só na propriedade do barão de Mauá fez com que viessem ao mundo 200 filhos. Já nas terras de D. Pedro II, que o escolhera pessoalmente, mais 100.
Na entrevista pra Folha que o repórter Luís Carlos de Souza fez com ele em 1976, nosso portentoso Antônio deu algumas dicas para quem quer se dedicar ao ofegante ofício de levar muitas mulheres para intercursos, o que atualmente só seria permitido aos sátiros de ficção. Vou revelar apenas três dos conselhos do eficiente cidadão: evite cigarros, bebidas e sorvetes, na opinião do abalizado personagem broxantes irrecorríveis. Outro: faça amor nas luas nova e cheia. Na minguante os guris nascem fracos…
Agora, pra mim, o mais impressionante nessa história toda não são apenas os 300 descendentes que Antonio Guaraciaba (este seu nome completo) teria deixado. Mas sim que na época da entrevista que redundou nesta crônica ele, aos 126 anos, estava casado com uma guria de apenas 33. Ao apresenta-la ao repórter, deu, sorridente, a informação fantástica:
— Ela está esperando!
O jornalista olhou e viu que, pela barriguinha, estava mesmo. Fato que, ao fim e ao cabo, deixa, quem dele toma conhecimento, pálido de espanto. Afinal, os anos 70 ainda era uma época bem anterior ao cantado e decantado Viagra… Ah, sim, já faz bom tempo que o incansável Antonio está, certamente com todas as glórias, no céu. Não, não faleceu rico. Morreu duro…
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ANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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Muito boa! Nunca havia ouvido falar desse senhor. Estória interessantíssima, além de divertida. Parabéns para o autor!