O grande ditado. Por José Horta Manzano
… Organizado pela Prefeitura de Paris, o gigantesco ditado recebeu 50 mil inscrições de cidadãos interessados. Na impossibilidade de atender a todos, foram sorteados 5.100 participantes, que se submeteram à prova divididos em três turmas de 1.700…
Todos nós hesitamos, às vezes, na hora de escrever certas palavras complicadas. Exceção, docente, discente ou displicente, por exemplo. O traço de união, então, é praga de Deus, como diz o outro. Cor-de-rosa ou cor de rosa? Cor-de-chumbo ou cor de chumbo? Há ainda quem se enrosque nas duplas cauda/calda, mau/mal & companhia.
No entanto, comparadas com as hesitações dos franceses, nossas dúvidas são como paçoquinha comparada a pé de moleque. Ambos os doces são feitos de amendoim, mas nossa paçoca é macia e derrete na boca, enquanto o pé de moleque deles é um verdadeiro quebra-queixo.
Isso vem do fato de a grafia da língua francesa ser baseada na etimologia. Há uma quantidade de consoantes duplas imperceptíveis na língua oral. Há profusão de ípsilons, de tê-agás e de pê-agás herdados do grego. Há irregularidades, como erros de transcrição que perduram há séculos e já fazem parte da língua.
Apesar disso – ou talvez por causa disso –, impressiona o amor que os franceses têm pela própria língua. Mais que amor, sentem respeito, orgulho, veneração. Um dos esportes nacionais mais populares são os concursos de ortografia. Volta e meia, alguma instituição organiza um. Não são para crianças, não, mas para marmanjos. Os participantes são adultos e idosos. Às vezes a final passa na televisão.
Domingo passado, 4 de junho, realizou-se um desses certames. Foi disputado ao ar livre, numa ensolarada avenida dos Champs-Elysées (que os franceses garantem ser “a mais bela avenida do mundo”), fechada para a ocasião. De manhã cedinho, já estavam lá dispostas 1.700 carteiras e um telão de 102 m2. As carteiras preencheram a distância entre duas estações de metrô.
Organizado pela Prefeitura de Paris, o gigantesco ditado recebeu 50 mil inscrições de cidadãos interessados. Na impossibilidade de atender a todos, foram sorteados 5.100 participantes, que se submeteram à prova divididos em três turmas de 1.700. Às 13 horas começou a prova da primeira turma. Cada candidato recebeu uma caneta e uma folha de exame. Cada turma teve direito a um texto diferente, lido três vezes, uma em leitura normal, outra devagar e a terceira para revisão. Os raros candidatos que entregaram uma prova sem nenhum erro receberam um prêmio simbólico. Os demais ficaram felizes de ter participado.
Não consigo imaginar o fechamento da Esplanada dos Ministérios, do Aterro do Flamengo ou do Vale do Anhangabaú para um ditado gigante. Aliás, em matéria de língua, nosso maior problema não está na grafia. Mas bem que seria uma boa ideia ensinar aos aluninhos que a língua é um tesouro. Que ela é o traço de união que nos abraça a todos e que, por isso, merece ser bem tratada.
Post scriptum
O megaditado dos Champs Elysées já foi homologado pelo Guinness Book of Records como o ditado lido para o maior número de participantes.
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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos, dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.
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Caro Manzano,
Quando tive que optar por língua no ginásio – sou desse tempo – escolhi o inglês, pois além de não precisar fazer “biquinho” – francês – queria saber o que diziam as letras de músicas dos Beatles, Who, Rolling Stones … e, meu ídolo maior: Bob Dylan.
Mas, muito tempo depois, fui trabalhar em uma empresa francesa ou uma brasileira que tinha capital francês – Helibras – montadora de helicópteros.
Fui então obrigado a aprender um mínimo de francês, tendo inclusive passado 41 dias no sul da França a trabalho, para poder me comunicar e sobreviver.
Descobri duas coisas: não é difícil entender e até falar, mas escrever é muito difícil.
Então, como expressou seu texto a dificuldade dos próprios franceses em corretamente escrever sua língua, imagina um não nativo!
Mas, ficou uma certeza: a sonoridade francesa é muito bonita!
Um abraço,
Inté!
SP 07/06/2023