Mofo nobre. Por José Horta Manzano
Sobre o mofo, em uma bela história o autor relembra de um artigo por ele escrito em 2012.
Sessão “Memórias do Blog Brasil de Longe“
Você sabia?
Mofou, tem de jogar fora. Tem mesmo? Nem sempre. Há males que vêm para bem.
Na Idade Média, uma das atividades favoritas dos senhores feudais era a guerra. Por um sim, por um não, juntavam seus vassalos e partiam para medir forças com um outro senhor. O século XVI já anunciava outros tempos, mas certos hábitos antigos continuavam arraigados.
Conta uma lenda que, por aqueles tempos, um proprietário de terras da região de Sauternes (perto de Bordeaux, no sudoeste da França) foi à guerra. Como imaginava estar logo de volta, deixou ordens claras: fazia questão de que esperassem sua chegada para iniciar a vindima, a colheita das uvas.
As coisas não correram exatamente como ele imaginava. A contenda se prolongou e não lhe foi possível voltar a tempo para a colheita. Temerosos, seus camponeses não ousaram tocar nas uvas antes do retorno do patrão.
Quando finalmente voltou a suas terras, o proprietário constatou que as uvas, ainda não colhidas, estavam já meio mofadas. Perdido por perdido, decidiu que a vindima se fizesse assim mesmo.
As uvas foram colhidas, pisadas, e o processo de vinificação foi lançado. Alguns meses depois, a abertura da primeira barrica trouxe uma surpresa muito agradável: o vinho, habitualmente medíocre e bastante ácido, desta vez parecia um néctar feito no céu. Licoroso, docinho, frutado, um luxo!
Os proprietários da região logo se deram conta de que o fato de haver esperado que as uvas mofassem tinha provocado aquela magia. Não entenderam como era possível, mas adotaram a nova técnica assim mesmo.
Passaram-se os séculos, e se manteve a técnica de só colher as uvas depois de engrouvinharem, adquirindo aspecto de uva-passa. Os enólogos têm hoje explicação científica para a miraculosa transmutação de um vinho à toa em delícia rara. Descobriram que, sob certas condições de umidade e temperatura, colônias de fungos microscópicos do gênero Botrytis Cinerea podem se formar. O microclima da região de Sauternes se caracteriza justamente por nevoeiros úmidos no início do outono, um pouco antes da época da vindima.
Esse fungo, quando afeta outras frutas, é catastrófico: toda a colheita pode estar comprometida. No entanto, quando ataca as vinhas, faz que a água dos bagos se evapore, aumentando a concentração de açúcar. Provoca o chamado mofo nobre. O resultado é um vinho naturalmente doce e ligeiramente licoroso. A cor da bebida também se altera, tornando-se um elegante amarelo alaranjado – ambré, como dizem os franceses.
Como acompanhamento de um queijo roquefort, um gole de Sauternes é uma dádiva. O sabor ligeiramente açucarado suaviza a aspereza do queijo de ovelha. É um fecho excelente para uma refeição de réveillon.
A consumir com moderação, naturalmente.
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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos, dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.
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