Rachadão. Por Aylê-Salassié Filgueiras Quintão
No fundo é tudo um “rachadão”
Mal passados os tais 100 dias da nova gestão de governo, com o Presidente viajando, no estilo Luiz XIV, o “Rei Sol”, pelo mundo acompanhado de enormes comitivas, começa-se a observar um empenho sistemático para refazer a narrativa histórica sobre a corrupção no Brasil, com o propósito, aparente, de resgatar os protagonistas, tanto públicos quanto privados, de direita ou de esquerda. Provavelmente, trata-se de um ACORDÃO: maiúsculo porque envolve muitos figurões em atividade do cenário atual.
As instituições jurídicas são primeiras vítimas: a Constituição, a legislação complementar, decretos e portarias. A sobra fica para a História. O procurador da República, Augusto Aras, num estilo do bombeiro Montag , do livro Fahrenheit 451 ( Bradbury, Ray, 1953), teria tido a “cachimônia” de mandar incinerar documentos da Lava Jato, e o ministro da Justiça, Flávio Dino, anunciou que a “liberdade de expressão no Brasil deixou de ser absoluta”.
Ora, queimar esses arquivos é na verdade, destruir provas acumuladas nesses 20 a 30 anos de investigações da Polícia Federal, das Comissões de Inquérito do Congresso Nacional e da própria Justiça, que antecederam a Lava Jato, heranças do relatório do Mensalão, do hoje ministro aposentado, Joaquim Barbosa. Claro que, apesar da suposta autonomia do Ministério Público (MPU), que se propõe a atuar no interesse da sociedade, Aras não o fez sem, antes, consultar o ministro da Justiça, um colecionador de ameaças, contra “quem não quiser cooperar”, com a visita da Polícia Federal. Assistiu-se algo semelhante na Venezuela, na Nicarágua, em Cuba, no Chile, na Alemanha nazista. Para ser justo, vi isso por aqui também, na ditadura, com Alfredo Buzaid, Gama e Silva e Armando Falcão.
Quero ter essas ameaças como boquirrotas ou como maus prenúncios, mas elas se somam à cassação do mandato do deputado ex-procurador da República, Deltan Dallagnol, pelo Superior Tribunal Eleitoral; as intimidações ao ex-juiz e senador Sérgio Moro e à “famiglia” Bolsonaro. Uma jornalista ativa, com relativa visibilidade, descartou a questão das joias e a história da falsidade das vacinas, para dar outra dica ao ministro: […] o esquema das rachadinhas foi inaugurado por Jair no início da sua carreira legislativa como vereador …[…]. A intimidade entre a jornalista e a famiglia devia ser grande, imagina-se.
Vacinas à parte, que me perdoe a colega, rachadinhas e rachadões não foram criados no governo Bolsonaro. A prática não é também exclusividade dos desatinados filhos do ex-presidente. Metade ou mais dos parlamentares em exercício as praticam há tempos, ou praticavam até a questão tornar-se pública, há três anos, podendo ainda ser alavancada para cassar os direitos políticos do pretencioso e eterno candidato à Presidência da República. Rachadinhas e rachadões não tem uma tipificação jurídica explícita. De maneira correlata, a sua prática pode aparecer na história com um perfil diferente, por exemplo, quando, para evitar serem apelidados de nepotistas, parlamentares e juízes trocam oportunidades de empregos nas respectivas repartições entre familiares, usando verbas de gabinete. Já levou mesmo gente para a cadeia. Esse poço não tem fundo.
O destino das “verbas para manutenção dos gabinetes” sempre foram os assessores e ex-cabos eleitorais. Os beneficiados são empregados domésticos, jogadores de futebol, líderes de torcida, amantes, bicheiros e etc… Já chegaram a bancar reservadamente funcionário (a) no exterior. É esse mesmo numerário que chega a ser carregado na cueca, ou na meia de cano longo, atravessando invisível as salas Vips dos aeroportos. Alimenta uma espécie de microeconomia na política regada a dinheiro público.
Já os esquecidos (será que a memória do brasileiro é tão curta assim?!) rachadões tem dimensões econômicas macros e consequências sociais amplas: Anões do Orçamento: desvios e propinas embutidos por parlamentares no Orçamento da União, e que já resultou no assassinato de uma professora. Orçamento Secreto, uma espécie de vale tudo na política. Mensalão, compra de votos no Congresso, também resultou em morte. Lava Jato, corrupção ativa e passiva na relação direta governo e empresas. Pedaladas Fiscais, improbidade gestora. Recursos processuais, instrumento de impugnação ou revisão de decisões judiciais; Nomeações e trocas de ministros, juízes, presidentes de empresas, fundações e conselheiros, com a troca de apoios políticos e judiciais. Subsídios e isenções tributárias para empresas, projetos, empresários nacionais e países. Operação Castelo de Areia que anulou provas contra corrupção levantadas pela Polícia Federal. Perdão de dívida a países estrangeiros. Financiamentos amplos do BNDES do Banco do Brasil e da Caixa Econômica; Confusão entre o Público e Privado, intencional e conveniente. Concessão de Cartas de registros sindicais, cabresto político. Participar de Comitivas presidenciais, passeios pelo mundo. Economia Criativa, invenção de novas alternativas de manipulação os gastos públicos, sem lastro no Tesouro.
Agora vem aí o novo “Arcabouço fiscal”, um conjunto de medidas, regras e parâmetros com a intenção de controlar ( na verdade, flexibilizar ) os gastos e receitas do Governo, por meio de manobras de gestão. capazes de gerar legitimidade. O Projeto teve no Congresso mais de 40 emendas. Propõem-se a substituir o modelo de “Tetos fiscais”, administrado pelo Banco Central, que não consegue convencer os governos estaduais da sua responsabilidade legal. Renovação sistemática de prazos para dívidas dos estados, cujos governadores esquivam-se sempre de ressarcir a União das ajudas recebidas da União.
Falta aqui a indústria do ódio, financiada pelo Tesouro Nacional, para difundir até no exterior imagens negativas contra o País. Tudo junto é definido como governabilidade. No fundo, é tudo um rachadão: Toma lá, dá cá. Todos se divertem
De saudosa memória são as advertências, lá atrás, do ex-ministro do Planejamento, João Paulo dos Reis Veloso, segundo as quais: “O País está entrando num túnel sem luz visível no final”, ou de Mário Henrique Simonsen, ex-ministro da Fazenda, que, por corrupção, cassou as cartas patentes de 25 bancos estaduais e corretoras de valores. Advertia: “O problema mais difícil do mundo, se for corretamente enunciado, um dia poderá ser resolvido. Já o problema mais fácil, ao ser mal apresentado, é irremediavelmente insolúvel”. Mangabeira Unger, ex-ministro de Lula e Dilma, professor da Universidade de Harvard (EUA) vem a reboque, com agressividade própria, dizendo que “O Brasil chafurda na mediocridade”.
Sou obrigado a acreditar na imaterialidade de um “ACORDÃO” entre as elites da política, empresariais e sindicais que sustenta a atual alternância desse Poder amplo e divertido: uma troca de favores dentro do espaço do Estado, sob a forma de transversalidade, que cruza as políticas públicas e todo o aparelho que sustenta a governança, que nunca chegam ao conhecimento da população.
Parece que patinamos pela História e sua revisão com a ajuda da mídia, sem liberdade de expressão, é conveniente e oportuna. Vai criando uma Nação anômica. O fascismo na Itália surgiu em um cenário como este. Será que estamos nesse caminho ou em outro?!
Era disso que o brasileiro tinha medo, quando votou nas últimas eleições?
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Aylê-Salassié F. Quintão – 90, Jornalista, professor, doutor em História Cultural. Vive em Brasília. Autor de “Pinguela: a maldição do Vice”. Brasília: Otimismo, 2018
E autor de Lanternas Flutuantes:
Li e minha angústia aumentou.