Deixe a Palestina fora disso. Por Charles Mady
… Parem de humilhar o Estado da Palestina. Tenho simpatia pela causa palestina por ser justa, assim como por Israel, que deve existir, de acordo com a ONU. Por favor, é preciso que se deixe de discutir o presente e o futuro com base no passado…
Artigo escrito pelo Prof. Denis Lerrer Rosenfield em O Estado de S. Paulo no último dia 8, intitulado “Política externa ideologizada” critica a importância dada pelo presidente Lula à atual situação mundial. Difícil tirar os méritos dessa orientação, mas, de acordo com o articulista, essa energia deveria ser utilizada em problemas internos nossos, que hoje são cruciais. Lula acredita que a volta à cena internacional, retirada pelo governo anterior, traria subsídios econômicos que fugiram durante a última gestão. Entendo, como o autor, a necessidade de articulações políticas presenciais para a boa governança. Neste momento, é difícil dizer onde se encontra a razão.
Mas o que mais me chamou a atenção no texto foram os comentários excessivos e desnecessários sobre a questão Palestina/Israel. Lidos com atenção, não são as propostas do articulista no título escolhido, que deveria abordar os vários focos de tensão ao redor do mundo. Ou, então, criticar com outro título as afirmações de Lula sobre o Oriente Médio.
Como talvez não quisesse focalizar esse assunto especificamente, o que é regra geral na imprensa, acabou por utilizar esse subterfúgio. Temas insistentes, mesmo que indiretamente, não permitem que os leitores os esqueçam, como preconizado por Goebbels. Deveriam simplesmente fazer parte da História e não vão colaborar para o caminho da paz, caminho esse que em artigo prévio já elogiei, talvez até erroneamente, a postura do Prof. Rosenfield.
Repetir fatos históricos podem fomentar ódios, que aumentam diariamente. Colocar culpa no mufti de Jerusalém, que sabia dos planos antes da Segunda Guerra para executar o que viria a acontecer, que os palestinos chamam de Nakba, sem descrever a realidade da ocasião, é no mínimo um desrespeito à História. E porque o mufti? Esquece-se de Jabotinsky e outros fanáticos, que participaram desse processo na teoria e na prática, dando vida ao sionismo sem limites. Esquece-se da Haganah e do Irgun, da forma como chegaram e atuaram, massacrando e destruindo povoados (presentes no documentário sobre Tantura, devastada, eliminada juntamente com centenas de outros vilarejos, como Jenin e Deir Yassin).
E ainda temos que ler sobre o mufti diariamente. Precisam de culpados. Temos piores. Temos exemplos de industriais, empresários, banqueiros judeus que se aliaram a Hitler para a obtenção de ganhos materiais. Temos Bibi, que tudo fez para destruir todas as tentativas de paz, testemunhadas por autoridades norte-americanas e europeias que participaram das inúmeras tentativas de acordo, e que concluíram ser impossível tratar com esse indivíduo.
Temos Bennet, que disse que um estado palestino nunca existirá. Temos Ben-Gvir e Smotrich, que querem “erradicar” árabes das terras “sagradas”, poluidores que são, e que preconizam “morte aos árabes” e incendeiam vilarejos inteiros em nome de uma limpeza étnica. Temos Meir Kahane, infeliz figura e prévio fora da lei, que é representado no Knesset por seguidores fanáticos, e radicais ao extremo. Temos Ariel Sharon, que não teve piedade de Sabra e Chatila.
Temos o maior campo de concentração do mundo, com cenas que lembram os campos de concentração nazistas e soviéticos, diariamente bombardeados pelas forças armadas “mais éticas” do mundo, deixando uma geração de crianças mortas ou definitivamente traumatizadas, vivendo em escombros que lembram cidades alemãs devastadas, como Dresden.
Portanto, professor, não temos apenas o mufti. Interessante, o senhor escreve que a terra outorgada ao estado judeu era apenas uma parte da “solicitada” pelos fundadores, pois no futuro iriam aos poucos conquistar o Eretz Israel, política essa adotada desde Ben Gurion.
Não se preocuparam com um povo que seria desterrado. Quantas pérolas (palavra essa utilizada no artigo em questão) serão necessárias para essa construção? Este pretenso país chega até onde? Do Nilo até o Tigre e Eufrates, não interessando quem habita essas regiões? Golan já foi “dado” a Israel por Trump, que faria melhor se desse ou devolvesse o Texas ao México. Será que o povo americano iria aceitar? Com que direito um presidente “doa” um pedaço de outro país a terceiros? A Rússia toma pedaços da Ucrânia. O mundo condena. É diferente do Oriente Médio? Ah, mas, aqui, é “diferente”.
“Quem se importa com os palestinos”? Equivale a “quem se importa com os judeus na Segunda Guerra? ”. A cegueira consciente é imoral.
Acredita mesmo ser ignorância ou má fé querer criar o Estado da Palestina, onde há uma população milenar, diferentemente dos judeus provenientes dos quatro cantos do mundo? Confesso que não entendi. Por favor, adoraria que pudesse responder: por quê? Acha mesmo justa a não existência do Estado da Palestina? “É diferente”?
Tenho simpatia pela causa palestina por ser justa, assim como por Israel, que deve existir, de acordo com a ONU. Por favor, é preciso que se deixe de discutir o presente e o futuro com base no passado.
Quem almeja a paz deve deixar o passado em livros e memórias e aceitar a existência de dois Estados, encerrando este triste capítulo da história da Humanidade.
Link do artigo citado, publicado em O Estado de S.Paulo, 8 de maio de 2023: https://www.estadao.com.br/opiniao/denis-lerrer-rosenfield/politica-externa-ideologizada/
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– Charles Mady, Médico e Professor associado do Instituto do Coração (Incor) e da Faculdade de Medicina da USP
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LEIA TAMBÉM:
- Outro artigo do autor sobre o tema, publicado pelo Chumbo Gordo 26 de outubro de 2022 e pela Folha de S. Paulo a 7 de novembro de 2022:
Estado de Israel e, ou, Estado da Palestina? Por Charles Mady
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