Aqui Jazz. Por José Paulo Cavalcanti Filho
… íamos, todas as noites, ao Village Gate. Pagando só 5 dólares para ouvir semideuses da música e o mais puro jazz. Primeiro entrava Thelonious Monk, negro enorme que mal cabia no piano, dedos que mal cabiam nas teclas, e tocava como se fosse um predestinado. Só para ele e os anjos…
Domingo foi o Dia Internacional do Jazz. Criado pela Unesco e anunciado, ao público, por Herbie Hancock ‒ um mago do piano, quem já ouviu sabe por quê. Volto ao passado (de vez em quando faço isso, espero não seja por conta da idade). Tudo começou em 1969, tinha 20 anos e cursava o quarto ano de Direito na Católica. Foi quando a Ditadura decidiu que não podia mais estudar no Brasil, e em nenhum outro lugar se possível (depois, ainda me proibiriam de ensinar). Não em razão das notas, aqui para nós. Mas por ser presidente do Diretório Acadêmico, imagino. Que pedir democracia, naquele tempo, era crime. Manda quem pode, obedece quem tem juízo ‒ ou pensa que tem, o que dá no mesmo. E acabei nos Estados Unidos.
Estávamos em Nova Iorque, na Universidade de Columbia (no subway, uma parada antes da 114 st. e do Harlem ‒ no tempo em que o Harlem era o Harlem, senhores) e íamos, todas as noites, ao Village Gate. Pagando só 5 dólares para ouvir semideuses da música e o mais puro jazz. Primeiro entrava Thelonious Monk, negro enorme que mal cabia no piano, dedos que mal cabiam nas teclas, e tocava como se fosse um predestinado. Só para ele e os anjos. Depois subia no palco outro negro, magro e elegante, com um pistom dourado – primeiro assim que vi, na vida. Era o grande Miles Davis. E ficavam tocando, os dois juntos, até muito depois de todas as horas razoáveis – para estudantes como nós, claro.
Já em Harvard, na cidadezinha de Cambridge (onde fica a universidade, separada de Boston pelo Charles River), o programa nos fins de semana era ir a Tanglewood ‒ pequena propriedade rural entre Lenox e Stockbridge. Seu gramado bem verde ia descendo, sem pressa, até um lago. Dentro do terreno, pequeno palco para orquestra. Ouvíamos a famosa Sinfônica de Boston, então regida por William Steinberg. Na entrada, recebíamos dois cobertores: um para forrar a grama, húmida, outro para proteger do frio. Mais uma caixa com sanduiches. E lá ficávamos algumas horas, de olhos fechados, ouvindo a orquestra. Talvez fosse o paraíso e não soubéssemos disso.
Anos depois, estava dando um curso em Harvard (por conta da UNESCO) e pretendi voltar a Tanglewood. O maestro, agora, era o consagrado japonês Seiji Ozawa, maravilha. Ocorre que, quando fui comprar as entradas, a mocinha da bilheteria disse, com ar de tristeza, “a temporada de sinfônica já acabou”. Para não perder a viagem perguntei se haveria, por lá, algum evento. E ela, como se fosse pouco, “Tony Bennett com a orquestra de Tommy Dorsey” ‒ apenas a orquestra, que seu inspirador morreu em 1956. E ficamos, deliciados, ouvindo esse que só não era o maior cantor do mundo por ter tido o azar de nascer na mesma época de Francis Albert (Frank) Sinatra. Em resumo, uma tarde inesquecível.
Agora circula, na internet, um vídeo com esse cantor de Nova Iorque, Anthony Dominick Benedetto. Quase 97 anos e com Alzheimer, iria ser apresentado ao público apenas para receber homenagens. Ocorre que, ao subir no palco, ele como que se iluminou. Ganhou vida. Cantou cerca de 15 músicas e saudou, sorrindo, Lady Gaga que entrava em cena para o acompanhar. A mesma que, apesar de encontros frequentes, havia tempos não sabia mais quem era. Até que, findo o espetáculo, voltou para seu mundo de sombras.
Volto ao presente. O Village Gate não existe mais; é apenas uma velha casa, agora vazia, com placa desbotada por cima. Tanglewood já não tem aquele ar de campo, mudou, é um anfiteatro enorme. E Tony Bennett nem sabe mais quem é. Seja como for, viva o jazz. Sugiro duas rádios, na internet, para quem se interesse: a Kjazz, de Los Angeles; e a Jazz Radio, de Paris. Se preferir música clássica, tem a BBC de Londres, com 5 canais ‒ um deles só para sinfonia, outro só para ópera. Proust (A fugitiva) recomendava saborear o passado “não de uma vez, mas grão a grão”. Assim seja, também, nas lembranças. Penso num poema de Pessoa (Há quase um ano não escrevo) e repito, com suas palavras, que ando com “saudades de mim”.
P.S. Para despedida, e sem sair do tema, lembro historinha do advogado (quem diria?) Ary (Evangelista) Barroso. Morreu de tanto beber. Em pleno carnaval, e ao perceber que a cirrose hepática o iria vencer, escreveu seu epitáfio num papel e pediu à mulher, Ivone, que pusesse no seu túmulo:
‒ Aqui jaz um homem que odiava jazz.
Ary embirrava mesmo com tudo. Segue uma prova disso. Já no hospital, os amigos convenceram (o recifense) Antônio Maria que não poderia ver Barroso morrer sem se reconciliar com ele. Maria concordou. Se abraçaram, emocionados. E Ary, com voz fraca, pede que Maria cante uma música dele, Ary. Maria, então, cantou Aquarela do Brasil. Ary aplaudiu, emocionado, e implorou que Maria lhe pedisse para cantar uma música do próprio Maria (Ninguém me ama, Manhã de Carnaval, tantas).
‒ Não precisa, Ary,
preocupado com o fato de que não teria forças para cantar. Mas concordou.
‒ Tá certo. Ary Barroso, por favor cante uma música minha.
‒ Não posso, Maria, que não conheço nenhuma.
‒ Porque é um canalha.
‒ E você um cafetão.
E morreram brigados. No caso do túmulo só não entendo é que a mulher de Ary, por pirraça (deve ter tido lá suas razões), não atendeu seu último desejo (salve Noel). Acontece.
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