PERFUME DE GARDÊNIA

Perfume de Gardênia. Por Antonio Contente

… A letra de “Perfume de Gardênia” é exemplar na construção da figura de mulher que se enquadrava perfeitamente às histórias das galanterias de certo tempo…

Perfume de Gardênia

Eu estava numa prosaica sala de espera, sozinho. De repente a porta se abre e entra um senhor, de cabeça totalmente branca como a minha e muito bem vestido, terno absolutamente impecável. Chegou cantarolando algo, baixinho mas audível. Finca o olhar nos meus óculos ao perguntar se eu conhecia a música.

         — Naturalmente – respondi – “Perfume de Gardênia”.

Ele levantou as sobrancelhas, surpreso, e mais surpreso ainda ficou, pois prossegui:

         — Não sei se algum outro artista gravou, mas este bolero só fez sucesso na voz de Bienvenido Granda.

Logo o senhor sentou e me disse sofrer sérias crises de nostalgia, que o levavam, invariavelmente, a escutar, solitário, em casa, sucessos musicais antigos.

         — Do meu tempo, certo? – Observou.

         — Certo – respondi – e do meu também. Mas você escuta sem companhia por que?

         — Bom – ele ajeitou o guarda-chuva no encosto da cadeira – é que minha mulher já foi pro céu; dos meus dois filhos tenho notícias apenas de vez em quando; um mora no Rio de Janeiro e o outro em Nova Iorque.

Na continuação falamos ainda de três ou quatro coisas, e como ele, por incrível que pareça, era mais velho do que eu, cedi lugar para que fosse atendido primeiro. Depois, assim que o simpático cidadão saiu, não pude evitar ser tomado por espécie de solidariedade com o camarada. Até me passou pela cabeça convida-lo para um café ou algo do gênero, porém acabei por vê-lo ir embora a empunhar seu guarda-chuva. Da porta, antes de dar o tchau, acentuou:

         — Acho que só nós dois, aqui em Campinas, sentimos, em algum momento de nossas vidas, o “Perfume de Gardênia”.

Eu ia acrescentar que necessariamente com o acima citado cantar cubano, porém não houve tempo.

Claro que há outros veteranos por aí que conhecem os boleros d’antanho. E nem me refiro a experts em música popular como o jornalista Edmilson Siqueira; porém sim a alguns frequentadores dos salões dos anos 50, quando Benvenido Granda e Trio Los Panchos embalavam amores de folhetim e bebedeiras homéricas. Desta forma foi natural que começasse a construir, em minha cabeça, a figura do recente companheiro de sala de espera envolvido em fundas saudades quem sabe da esposa que, segundo me disse, morrera.

A letra de “Perfume de Gardênia” é exemplar na construção da figura de mulher que se enquadrava perfeitamente às histórias das galanterias de certo tempo. Afinal, com versos muito inspirados, o porto-riquenho Rafael Hernandez Marin começa afirmando que a moça que o conduziu a escrever a canção tinha na boca perfume da flor gardênia que seria, na opinião dele, o aroma do amor. Adiante acentua que o sorriso da criatura era todo feito de alegres notas, e que ela levava na alma virginal pureza. Convenhamos que tudo isso representa um rol e tanto de qualidades; que, com certeza, arrancavam suspiros não só em bailes para as moças de família como também nos feitos para as frequentadoras de nem sempre afamados cabarés.

Durante o dia inteiro, por causa do acidental encontro na sala de espera, fiquei com aquilo na cabeça, chegando mesmo a recordar outros sucessos de Bienvenido, como “Percal”, “Angústia”, “Sonhar”, “Teu Preço”, “En la Orilla del Mar” etc. etc. Ao fim e ao cabo me convenci de que o idoso senhor que estivera comigo deveria estar passando por fase de grande sofrimento; o que, aliás, ficou exposto no instante em que entrou na sala a solfejar o bolero capaz de levar a tantas lembranças. Cheguei, por fim, a concluir que caso tivesse o endereço do camarada iria a casa dele; para, a comentar coisas do passado, quem sabe proporcionar-lhe alguns momentos de fuga a eventuais angústias.

No fim da tarde, ainda meio abalado pelas prováveis dores do cidadão com quem trocara apenas breves palavras, resolvi despencar no Bar do Seu Fernando, na rua Piedade, para aliviar a cabeça. Todavia, era lá que estava a maior surpresa. Pois, mal entro, avisto, a um canto, numa mesa, o senhor da sala de espera acompanhado de linda jovem que certamente não era sua neta. Ao me ver ele abre riso luminoso; e acena. Como a beldade estava de costas, apontei, ao perguntar:

         — Perfume de Gardênia?

Ele respondeu que não, balançando o indicador; após acrescenta, a mostrar os dedos da mão direita:

         — Chanel. Número Cinco…

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Antonio ContenteANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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3 thoughts on “Perfume de Gardênia. Por Antonio Contente

  1. Caro Antônio,
    Em sua ultima crônica, fui levado a infância pelo Almanaque Fontoura; agora, retornam as lembranças dos boleros na voz do “Bigode que Canta”, apelido do Bienvenido Granda.
    Coloquei um cd com músicas dele e, escrevo ao som de sua voz.
    Abraço.

    inté!

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