Quem lembra deste almanaque? Por Antonio Contente
… Na verdade esta historinha, real, pode conduzir a muitos caminhos. A mim, por exemplo, levou à recordar o Almanaque do Biotônico Fontoura, extraordinária publicação que durou de 1920 a 1985…
Houve época em que, ao prestar vestibular, o estudante era submetido à sabatina oral. Assim, certa moça do Rio de Janeiro, nos anos 50, se viu diante do professor na tentativa de entrar para a Faculdade de Medicina. De repente, prova de Biologia, o mestre olha nos olhos dela e lança a pergunta, como um dardo:
— Então diga-me lá, mocinha, formiga faz xixi?
Espantada a guria, instintivamente, coçou a cabeça. Depois prendeu o lábio inferior entre o indicador e o polegar da mão direita como se, dali, pudesse sacar a resposta. Por fim, suspirou um tímido “pra lhe falar a verdade, não faço a menor ideia se este inseto da família Formicidae, ordem dos Hymenoptros, verte água”.
O mestre deu um sorriso de canto de boca e, sem dó nem piedade, reprovou a aluna. Que, soube-se depois, prestou novo vestibular no ano seguinte, passou, acabando por se tornar uma das grandes médicas cariocas.
Na verdade esta historinha, real, pode conduzir a muitos caminhos. A mim, por exemplo, levou à recordar o Almanaque do Biotônico Fontoura, extraordinária publicação que durou de 1920 a 1985. E na qual as pessoas encontravam verdadeiro universo de pequenas informações. Que, talvez, poderiam ter levado a vestibulanda a responder com segurança se as formigas urinam ou não.
Para quem, nos anos 40, morava nos rincões do Brasil, e não só os remotos do Norte e Nordeste, mas até no chamado Sul Maravilha, a chegada do Almanaque, distribuído em farmácias, era um acontecimento. E nem poderia ser de outro jeito, pois a publicação foi bolada por Monteiro Lobato, um dos grandes escritores brasileiros, com o apoio do seu amigo farmacêutico Cândido Fontoura, que abraçou e financiou a ideia. Tratava-se de publicaçãozinha mais ou menos do tamanho de um livro, com não mais de 30 ou 40 páginas. Basicamente trazia informações de curiosidades, horóscopo, dias bons para a pesca (de acordo com a fase da lua) e até histórias em quadrinhos. Nestas o grande personagem era o Jeca Tatuzinho, inspirado na criação lobatiana do Jeca Tatu. Os enredos, muito bem desenhados, tinham cunho educativo voltado para a saúde, a divulgar meios e modos dos moradores do interior se verem livres das verminoses. Naturalmente que também anunciavam os remédios contra lombrigas fabricados pelo mesmo laboratório que colocava nas prateleiras o Biotônico Fontoura.
Imagino que, na história da propaganda brasileira, o Almanaque tenha sido fenômeno até hoje não igualado. Basta lembrar que, ao ser lançado, veio com tiragem de quase 3 milhões de exemplares. E o que cristaliza ainda mais a faceta de fenômeno é que, ao desaparecer o fantástico informativo, em meados dos 80, a tiragem andava pelos 100 milhões. Como conseguiram matar algo com uma penetração dessas?
Nas páginas do Almanaque, que chegava ao meu chão da infância, Mocajuba, no âmago da Amazônia profunda, nos navios, aprendi muita coisa. Como lá não havia farmácia, quem distribuía era o dono do único armazém onde o xarope e os remédios para vermes do Laboratório Fontoura eram vendidos. Na porta do comerciante, Seu Romão, formava-se fila dos que desejavam ganhar a revistinha. Festa pura.
Em anos mais recentes li, em algum lugar, que um longo arrazoado de professor que fazia doutorado e mestrado em Comunicação, tinha o famoso Almanaque como tema. O que, naturalmente, enriqueceu ainda mais minhas lembranças daquilo que aprendi nas sábias pequenas páginas. Distância da terra à lua? Claro, lá recebi a informação de quantos quilômetros separam o satélite da terra. Número de mares no globo terrestre? Aprendia-se direitinho quantos eram, com nomes etc. Quantos anos vive uma sequoia? Pois é, primeiro sacava-se algo sobre a fantástica árvore, onde crescia etc. Depois, o tempo que durava. Assim os conhecimentos trafegavam pela ictiologia, botânica, matemática, biologia, geografia, história e muito mais. Um verdadeiro google embrionário contido numa revistinha.
Agora, voltando à história da vestibulanda do começo desta crônica, certamente ela não era leitora do Almanaque do Biotônico Fontoura. Dúvidas, todavia, me atacam neste exato momento. Pois fui leitor voraz da publicaçãozinha. E até hoje, com toda humilde sinceridade, confesso, a usar uma palavra mais condizente com o verter água, que não sei se formiga mija. Quem souber, por favor, me informe. Cartas para a redação.
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ANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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Caro Antônio,
Você me trouxe lembranças de minha infância, onde o Almanaque Fontoura fez parte.
Meu pai lia e, repassava para que lêssemos – quem ainda não sabia, olhava as figurinhas -.
Graças a isso, era proibitivo andar descalço; usávamos chinelos, alpargatas, tamancos etc., mas jamais com o pé no chão, pois podíamos pegar “bicho de pé” ou outros problemas, como bem ensinava o almanaque, razão da lombrigas e verminoses do Jeca Tatu.
Aprendemos muita coisa nesses livrinhos, pena ter acabado; depois passamos para “Seleções Reader’s Digest”, que chamávamos apenas de “Seleções”, já que a pronuncia do nome original até hoje dá nó em minha língua.
Abraço
Inté!
Mestre
Que maravilha de recordação,cresci lendo e esperando a nova edição.
Meu pai era amigo e tinha contrato de divulgação do Laboratório Fontoura.
Uma prima minha se casou com o João Fontoura, lembra da da fazenda que eles tinham na rodovia Dom Pedro.
Parabéns