Finalmente, a pesquisa. Por Antonio Contente
… — Estou fazendo pesquisa sobre os primeiros cem dias do atual governo – comunica, mostrando, após, os dentes alvos, mais brancos do que as neves do Kilimanjaro….
Ele estava posto em sossego a ler o quase centenário Correio Popular num dos bancos do Largo do Rosário, em Campinas, quando a moça, francamente bonita, postou-se em sua frente e perguntou se poderia falar. Sinceramente perturbado, principalmente ao constatar, com os olhos que a terra poderá não comer, que o sorriso da criatura era absolutamente perfeito, envolvente, ele também levantou para, já vassalo, se curvar:
— Ora, mas me faça o favor, estou à sua disposição…
Isto postos, ambos já sentados, ela abriu a pasta que carregava e colocou, sobre o próprio colo, pranchetinha tomada por algumas folhas de formulários.
— Estou fazendo pesquisa sobre os primeiros cem dias do atual governo – comunica, mostrando, após, os dentes alvos, mais brancos do que as neves do Kilimanjaro.
— Claro, claro – o rapaz cruza as pernas – estamos em pleno tempo de expectativas; até onde minha vista alcança, é natural que se façam pesquisas. Aliás, gostaria de lhe dizer uma coisa.
Ela balançou um sim com a cabeça; nosso personagem completa:
— Sempre tive muita vontade de ser pesquisado.
— Mesmo?
— Mesmo. E até me perguntei, mais de uma vez: por que não eu?
— Finalmente chegou seu dia, não é?
— Certamente – vem a concordância – e veja você que não poderia ter chegado em situação melhor.
— Como assim?
— Está fazendo um tempo maravilhoso, você não acha? Em outras épocas eu até afirmaria ser esta uma gloriosa manhã. Afinal, ela tem a seu favor que começou o Outono, estação que todo mundo ama porque, pelo menos teoricamente, deveria marcar o fim dos calores do Verão…
— E não é que é?
— De fato, é. Estou te conhecendo numa fascinante, uma gloriosíssima manhã. Você não deixa de ser um presente que os deuses estão me dando neste instante santificado.
— Ora, você… E então… – ela mexe nas folhas de papel – vamos começ…
— Veja – ele interrompe – ao quebrar o tabu para me pesquisar, você está solidificando uma crença.
— Em que?
— Em pesquisas. Eu não acreditava.
— Não acreditava em pesquisas?
— Sim… Mas, note bem, não é que eu não acreditasse nos resultados delas. Sequer cria que, realmente, fossem feitas.
— Não entendo…
— É que, por exemplo, nunca alguém do Ibope bateu em minha casa para saber que programa de TV eu estava assistindo, compreende?
— Compreendo sim, pois na minha residência também nunca ninguém bateu.
— E eu mesmo, que conheço gente paca, desde importantes empresários até simples varredores de rua, nunca tive o depoimento de alguém que tivesse sido abordado.
Percebendo que a moça aprumava a caneta a ajeitar a prancheta sobre o colo, nosso amigo acrescenta:
— A partir de agora, com você aqui, não terei mais dúvidas. Estou, finalmente, diante de um caso consumado.
— E então…
— E então – ele garante – começo a crer, piamente, que as pesquisas embutem, de fato, um embasamento científico. E são insubstituíveis.
Professoral, o moço vai em frente:
— Um computador, depois, certamente vai processar esses dados que você colherá deste pobre homem das ruas. Que, contudo, não há como obtê-los a não ser assim, com pessoas como você saindo por aí com papel e lápis a catar opiniões que caracterizem as tendências.
— Esta é a nossa intenção.
— E é perfeita. Pois veja: como você avaliaria algo com precisão a não ser utilizando o método que você colocará, neste instante, comigo?
— Pra falar francamente…
— Não há jeito. Tem que ser assim mesmo. E até já estou curioso.
— Com que?
— Você acha que os primeiros dias do homem de volta ao planalto estão sendo bons?
— Bem, ainda estou indecisa…
— É estudante?
— De arquitetura.
— Que idade?
— Vinte e três.
— Mora aqui?
— Moro.
— Tem namorado?
— Calma lá – ela interrompe – afinal, quem é o pesquisado?
— Claro que sou eu – ele admite.
— E então, vamos lá?
— Vamos… Mas e que tal se, antes, a gente fosse ali no Regina, tomar um café?
— Café? Você é mesmo surpreendente…
— É por ali – ele aponta, já de pé, no rumo da Barão de Jaguara — venha…
Esticou a mão. Ela colocou a prancheta de volta à pasta. E foram.
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ANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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