Oferendas do mar. Por Antonio Contente
… se essas oferendas do mar são, em geral, macabras, podem, de outro lado, também oferecer elementos para algumas histórias até singelas. Como a que ocorreu com o pescador Paulo, não o bíblico, sim modesto morador de umas das ilhas que formam o enorme delta do rio Amazonas, onde de vez em quando me escondo…
Alguns ecologistas mais radicais costumam afirmar que os mares são as latas de lixo de pelo menos parte da humanidade. Isso talvez nem possa ser contestado, mas há lugares em que as águas dos oceanos são limpas, azuis, translúcidas. E é exatamente nestes locais que, de vez em quando, se tem surpresas. Ocasionadas pelo que passageiros de navios que navegam ao largo atiram por cima das amuradas. Ou até algo mais grave. Eu, por exemplo, já sujei os pés em praias absolutamente virgens, no litoral atlântico da Amazônia, em placas de óleo negro. Resultado das lavagens que cargueiros fazem em seus porões e salas de máquinas, escondidos pelo anonimato que o mar alto propicia. Sujeira que as correntes marítimas fazem chegar a areias ainda imaculadas.
Mas se essas oferendas do mar são, em geral, macabras, podem, de outro lado, também oferecer elementos para algumas histórias até singelas. Como a que ocorreu com o pescador Paulo, não o bíblico, sim modesto morador de umas das ilhas que formam o enorme delta do rio Amazonas, onde de vez em quando me escondo. Certa manhã, preocupado com a única filha doente em casa, o trabalhador nativo, que ainda hoje me abastece de peixes marinhos (há também os de rios) de vez em quando, caminhava na praia talvez a orar pela saúde da guria. Foi quando viu, jogado por onda pouco mais alta, um objeto alcançar a areia. A luz que refletiu penetrou nos olhos de Paulo e ele se precipitou para pegar o cilindro.
Tratava-se, na verdade, de uma lata de spray, pouco maior do que as encontradas nos supermercados com veneno para matar baratas. Exibiu aos olhos do bom homem pintura em azul, só que diferente, algo com a tonalidade intermediária entre a cor do céu e das águas profundas, brilho de cetim. Observando na parte de cima uma espécie de botão vermelho, ele apertou. A resposta foi um chiado forte, que fez com que largasse o achado. O que não impediu de, imediatamente, pensar na filha enferma. Tornou a juntar o spray certo de que o sopro sibilante que saíra de dentro dele poderia curar a menina.
Façamos um corte para dizer que, dias antes, sabedor do estado da garota, peguei, de barco, o médico do Posto de Saúde de Soure, cidade distante alguns quilômetros do barraco de Paulo e o levei lá. Ele diagnosticou uma amigdalite de bom tamanho e, no outro dia, forneceu os remédios. Que, naturalmente, entreguei ao preocupado pai explicando, direitinho, a posologia que o doutor recomendara.
Entre a entrega dos medicamentos e o achado do spray, que eu desconhecia, decorreu pequeno espaço de tempo. Tanto que, quando cheguei na casa do homem para saber como tudo andava, aí sim, alguns dias depois, encontrei, já no terreiro em frente à porta, a garota a correr atrás de uma galinha cercada de pintinhos. Vendo o pai sentado num tronco, comentei:
— Pelo jeito, está boa. Os remédios fizeram efeito.
Ao invés de responder ele pegou meu braço levando-me para o interior do casebre. Foi lá que mostrou num oratório, entre imagem de São Jorge e outra de Nossa Senhora da Conceição, um spray de azul algo acetinado.
— Do que se trata? – Apontei.
— Foi o que curou a Eliana – ele respondeu.
Contou-me então a história do tubo de metal que o mar atirou a seus pés, do chiado que ouviu ao apertar o pino vermelho e do que fez com o objeto ao chegar em casa. Disse-me que espirrou no pescoço da menina, massageando, o que restava do achado que, realmente, foi uma oferenda do mar. Apenas ouvi, observando que as caixas e o vidro com xarope que o médico mandara, estavam sobre caixote a um canto. Apesar de bastante curioso, apenas olhei. Mas depois, com a desculpa de pegar um caneco com água, tornei à casa. As embalagens dos medicamentos, verifiquei, estavam absolutamente intactas. Daí que, mais curioso ainda, fui ao oratório e peguei o tubo de spray. Nele estava escrito, em letras pequenas que memorizei: era um óleo lubrificante para motores marítimos fabricado na cidade de Zele, Bélgica, pela CMC Chemicals Europe. Voltei para junto de Paulo e fiquei calado, apenas a olhar as ondas do mar. Pois não havia nada mais lúcido para então fazer.
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ANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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