O depois das chuvas. Por Antonio Contente
… É inevitável que, ao exalar seu amor pelas chuvas. não deixe de citar a famosa maravilha, que de fato é, do cheiro da terra molhada. Que, contudo, é realmente mais intenso e chamativo não na hora dos temporais; sim nos momentos do apaziguamento que os sucedem…
Geralmente quem escreve sobre chuvas fala delas quando ainda estão em preparo pelos céus ou nas quedas, com pompa e circunstância. Porém, agora, queria dizer que os pós-aguaceiros também embutem belezas raras e preciosas; pois um mundo sobre o qual escorrem restos de pingos em galhos, troncos e folhas, caindo depois sobre a terra lavada que emana aromas vitais, é canto e canção; aconchego e passeio aos distanciamentos.
É impossível detectar a última gota de vistosas borrascas. Porém, o efeito do conjunto delas depois que param, desenha ao redor de quem as viu todo um universo de pequenas belezas que acabam por aureolar as vastas emoções que nos tomam. É inevitável que, ao exalar seu amor pelas chuvas. não deixe de citar a famosa maravilha, que de fato é, do cheiro da terra molhada. Que, contudo, é realmente mais intenso e chamativo não na hora dos temporais; sim nos momentos do apaziguamento que os sucedem.
Nem todas as chuvaradas são iguais; entretanto, sempre iguais são os instantes de encantamento que provocam. Eu, por exemplo, sou um avarento proprietário das “minhas” chuvas. Dizem, e talvez até provem, que as mais belas do mundo costumam desabar sobre a mui heroica cidade de Santa Maria de Belém do Grão Pará onde, nos velhos tempos, as pessoas marcavam os encontros para antes ou depois delas. Passei boa parte da juventude lá, vi muito isso; todavia, as chuvas que coleciono e busco, sempre que possível, estão numa pequena cidade às margens do rio Tocantins, na Amazônia Profunda, setor Pará, presas num tempo de realidades e memórias.
Elas sempre chegavam sobre as margens do curso d’água, escurecendo primeiro o céu, depois a silhueta das matas na outra margem; por último, a imensa superfície líquida. Os peixes que, quando saltam para o ar nos dias de sol são súbitos relâmpagos de prata, no anteceder dos temporais emergem como sisudos e descoloridos bastões; a levantar espumas opacas no bater de volta às profundezas.
Sempre vi “minhas” chuvas sentado numa escada de tábuas, em frente à enorme casa de madeira. E foi somente com o correr do tempo que aprendi a sentir as pequenas maravilhas postas a meus olhos depois que caia o nunca detectado último pingo. Agora sim, o acariciante aroma da terra molhada. Em cuja alquimia, aliás, entrava também o que vinha dos grandes troncos pelos quais a água permanecia a escorrer por longo tempo. Também o que saia dos galhos de cujas folhas dependuradas o gotejar vinha como que marcado por misterioso metrônomo. Por último, da própria superfície do rio que, molhado pela chuva, deixava que o ar fosse tomado por cheiros de algas, folhas secas e sementes oleaginosas que a corrente levava; ou mesmo pelos suspiros de cantigas alimentadas pelos medos e coragens de nossas próprias lendas.
Outra esplêndida curtição no pós-chuva se o chão ao seu redor for relvado é, simplesmente, ficar olhando para ele. A primeira coisa a perceber é a mutação na tonalidade do verde que, úmido, fica mais vivo ou, vá lá que seja, mais verde. Depois, é sempre prazeroso ir percebendo a volta dos seres que ali vivem se a grama fica seca. Em primeiro lugar, as formigas. Dizem alguns entendidos, não sei se são formigólogos, que as saúvas, por exemplo, só voltam realmente a percorrer o chão já sem águas, quando têm certeza de que não haverá novo pampeiro. Um velho jardineiro que cuida da área verde acima da rua Pedregulho, aqui mesmo na Chácara da Barra, me disse:
— Quando você quiser saber se uma chuva forte que parou de cair voltará, acompanhe o movimento das saúvas. Se a enxurrada seca e elas saem, não há perigo imediato de novos temporais.
Certa vez, em Londres, que é a cidade mais verde da Europa, entre as que conheço, me protegi de chuvarada numa casinhola no lindo Kensington Garden. Parada a água fiquei a curtir as maravilhas do instante quando um senhor, bem inglês na feição, no porte e na indumentária, me perguntou se eu não achava os pós-chuvas uma das mais lindas criações de Deus. Respondi, meio sem jeito, que nunca tinha pensando no assunto sob esse prisma. Ao que o cavalheiro, provavelmente pregador evangélico como outros que ficam nos parques londrinos, murmurou, apontando para o redor com a ponta do guarda-chuva:
— Pode ter certeza que tudo por aqui, a relva, as árvores, as flores são partes da sagrada obra do Senhor.
— Jamais direi que duvido – suspirei – mesmo porque sei lá eu se pode ser pecado contestar essas coisas…
Por fim, amigos, o que não se pode nunca esquecer é que é depois dos grandes aguaceiros que costuma cantar o bem-te-vi, esse arauto do bom tempo. Ouvindo o trinar do emplumado, olhe logo para o alto. O céu pode até não se mostrar azul, de repente. Mas, se for finzinho de tarde, não haverá dúvidas de que estarão a velar por você, logo adiante, as benesses da linda música de Mitchell Parish e Hoagy Carmichael; a derramar os significados e carícias das mais lindas poeiras de estrelas.
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ANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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Alegra-me saber que vou estar diante de suas crônicas Sr. Contente.