Sobre afetos, desafetos e democracia. Por Alexandre H. Santos
…Era sobre esse cuidado que o referido mestre queria nos alertar: que não permitamos que as paixões falem mais rápido e mais alto do que nossa razão…
“Quando você entende que toda opinião está carregada de história pessoal,
começa a compreender que todo julgamento é uma confissão.”
Nikolas Tesla
O professor começou a explicar o advento do racionalismo na filosofia ocidental com uma anedota: “Deus fez o ser humano animal racional, mas reservou para a espécie uma dose quase tóxica de afetos...”
Na reta final das eleições presidenciais do ano passado, os resultados projetados pelos principais institutos de pesquisa do país e o calor do cenário super inflamado somaram grandes expectativas. E não raro, nós sabemos, grandes expectativas terminam em frustração. O fato de Lula não ter vencido o pleito logo no primeiro turno, gerou nas hostes democráticas e progressistas uma autêntica onda de depressão. Era sobre esse cuidado que o referido mestre queria nos alertar: que não permitamos que as paixões falem mais rápido e mais alto do que nossa razão.
No último domingo, 19 de março, no município de Jaciara (MT), após uma acalorada discussão política, o eleitor petista Edno de Abadia Borges, 60 anos, assassinou com dois tiros de revólver o bolsonarista Valter Fernando da Silva, 36 anos. O fato comprova o óbvio: as paixões inflamadas, a estupidez e a violência existem em todos os lados; e todos os extremismos se parecem.
Na teoria, atenuar ou redirecionar os arroubos dirigidos contra o semelhante parece ser e é uma questão simples. Na prática, porém, pensar antes de explodir, respirar duas ou três vezes ao invés de já partir para a pancada ou puxar o gatilho não costuma ser tão fácil. Eu, você, ela e ele ainda somos em grande medida seres impulsivos e irracionais. Custa muitíssimo a nós humanos compreender e aceitar o primitivismo da espécie Sapiens. Adoramos nos associar a Einstein ou a Gandhi; e com frequência nos esquecemos de que levamos dentro de nós os instintos mais reptilianos e brutais.
Graças a uma conversa com minha amiga Aimée sobre o tema da violência cheguei a Konrad Lorenz, renomado zoólogo, etólogo e prêmio Nobel de Medicina de 1973. A leitura do seu livro “Sobre a agressão” mexeu fundo comigo; e reforçou meu entendimento de que a Natureza é tão indiferente aos nossos julgamentos de “bem” e “mal” quanto ao resultado da Megasena. Desde tal perspectiva, a biologia contradiz a crença de que somos capazes de criar uma sociedade 100% pacífica e solidária.
Lorenz, entretanto, não dispensa a esperança. Afirma que se soubermos lidar com nossos impulsos violentos de forma não a reprimi-los, recalcá-los ou sublimá-los, mas sim a transformá-los em ações e atitudes benéficas e construtivas, haverá futuro para os indivíduos e a coletividade. Noutras palavras, com árduo trabalho conseguiremos extrair luz do nosso lado mais sombrio. Os recursos para tanto pertencem às vias pedagógica e terapêutica – quer dizer, iluminar envolve aprendizado, conhecimento e, por certo, cura. Se algo dá trabalho pode ser humanamente realizado.
Se as suas e as minhas opiniões equivalem a confissões, ninguém escapa de ter sua nudez revelada pela boca. Ainda assim, as ações desnudam mais nossa intimidade do que as palavras que dizemos; sejam elas ditadas pela emoção ou pela razão. O fato é que a cada dia torna-se mais evidente que a vida acontece em rede; de maneira que ninguém escapa à condição de interligado. Somos um condomínio ontológico e o que na Terra afeta um repercute em todos os demais.
A resistência a essa compreensão é uma das sequelas do individualismo possessivo estimulado ao extremo pelo liberalismo econômico. Exemplos banais, mas emblemáticos, são dados pelos condôminos que por morarem no térreo ou no primeiro andar se sentem menos responsáveis pela segurança, uso adequado e manutenção dos elevadores; e pelos donos de cães que não recolhem as fezes que seus pets fazem na rua.
Mas voltemos à polarização entre nós brasileiros. Desde o Estado Novo e a Ditadura Militar não víamos tanta destruição de pontes e tanta construção de muros: um cenário planejado com minúcia e sistematicamente construído pelo fascismo nos últimos quatro anos. As discordâncias de opinião que costumavam gerar oponentes e adversários, passaram a produzir desafetos e inimigos. O constante estímulo a intolerância, ao conflito e a violência tinha por meta a eclosão de uma guerra civil. Embora abortado pelo resultado legal, legítimo e democrático das urnas, esse projeto de ruptura nacional seduziu milhões de patrícias e patrícios. Os eventos do 8 de janeiro próximo passado confirmam o hercúleo trabalho que teremos pela frente para suplantar o ódio, curar as feridas e pacificar a Nação.
Nada disso será possível sem a necessária, difícil e cotidiana prática da Democracia.
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*Alexandre Henrique Santos – Atua há mais de 30 anos na área do desenvolvimento humano como consultor, terapeuta e coach. Mora em Madri e realiza atendimentos e workshops presenciais e à distância. É meditante, vegano, ecologista. Publicou O Poder de uma Boa Conversa e Planejamento Pessoal, ambos editados pela Vozes..
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