Fake news e solidão. Por Fernando Gabeira
…A leitura de alguns temas complicados me leva a escrever sobre uma palavra simples do nosso cotidiano: solidão. Rumos políticos, ecológicos e filosóficos apontam para ela.
PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O GLOBO E NO SITE DO AUTOR, www.gabeira.com.br, EDIÇÃO DE 20 DE MARÇO DE 2023
A leitura de alguns temas complicados me leva a escrever sobre uma palavra simples do nosso cotidiano: solidão. Rumos políticos, ecológicos e filosóficos apontam para ela.
No momento em que se discute o controle das redes sociais, é preciso lembrar que vivemos uma política definida como pós-verdade. O tsunami de fake news, teorias conspiratórias e desinformação talvez seja apenas a face visível.
Uma das causas profundas da crise democrática é a naturalidade com que se usou o termo realidade alternativa. Refiro-me a governos, não apenas a indivíduos. Trump, que se sentia no direito de contar o número de pessoas na sua posse de forma diferente de todos os outros observadores.
Colin Powell foi à ONU, em fevereiro de 2003, e apresentou uma série de imagens sobre armas de destruição em massa do Iraque. Tudo fake news. A Rússia começou com a dezinformatsiya, termo cunhado pela KGB. Depois introduziu a maskirovka, uma forma de iludir. Hoje já tem métodos mais sofisticados como o controle reflexivo (upravlenie), que consiste em disseminar notícias que forcem o adversário a tomar como racional uma decisão que interessa aos próprios russos.
A internet, com suas bolhas e rapidez de propagação, acabou consagrando o mundo da pós-verdade. Só que, como diz Hannah Arendt, precisamos de um mundo comum de fatos (a Terra gira em torno do Sol, dois mais dois igual a quatro). É nesse mundo que compartilhamos um senso comum. Alguém diz algo, e o outro sabe o que tem em mente ao usar a palavra. A perda desse senso comum é um desastre para a democracia.
— Mais do que o estado de crise da democracia liberal contemporânea, a pós-verdade é o sintoma de um problema mais profundo que, em termos filosóficos, deveria ser classificado como hiperindividualização ou subjetivismo radical, algo expresso melhor usando uma palavra de nosso vocabulário comum: solidão — diz Mirko Alagna no artigo “O chão tremendo aos nossos pés: verdade, política e solidão”, publicado na revista Soft Power.
O grande filósofo moderno Nietzsche, ao afirmar que Deus estava morto, acreditava sinceramente que caminhávamos para uma liberdade maior, livres da mortificação e culpa impostas pela religião. Mas a liberdade de criar seus próprios padrões morais era vista por ele também como um nomadismo, uma distância da sociedade, enfim, uma solidão olímpica do homem superior. Ao combater a metafísica, acabou se abraçando a ela.
O resultado é também uma profunda solidão.
Os caminhos que nos trouxeram aqui foram os da liberdade individual. Antígona, a personagem grega, simboliza essa luta. A liberdade é um grande valor ocidental. Mas o próprio autor da tragédia, Sófocles, acentuava que todas as ações humanas que ignoram limites levam à destruição.
Camus perguntava na sua leitura de Nietzsche: liberdade de que ou liberdade para quê? Pode ser uma indagação útil para a formulação de uma política pós-liberal. Ainda não conheço seus contornos, mas acredito que regulamentar as redes sociais é um dos seus passos embrionários.
Na semana passada, a revista Atlantic intitulava um trabalho sobre extremismo político e religioso nos EUA com a expressão “nova anarquia”. É possível que tenhamos chegado perto de uma nova expressão do anarquismo, mas sem o romantismo e a fundamentação do passado. Apenas um mundo de teorias conspiratórias, sem base real compartilhada, um espaço hostil a qualquer relação de confiança.