500 anos se passaram …Por Aylê-Salassié Filgueiras Quintão
“Demorou 500 anos, mas vocês chegaram lá…”: assim o Presidente da Academia Mineira de Letras, Rogério Farias, deu posse ao primeiro índio, Ailton Krenak, como membro permanente de uma Academia de Letras no Brasil…
“Demorou 500 anos, mas vocês chegaram lá…”: assim o Presidente da Academia Mineira de Letras, Rogério Farias, deu posse ao primeiro índio, Ailton Krenak, como membro permanente de uma academia de letras no Brasil. Reconhecido como filósofo, poeta e escritor, o novo imortal é um líder indígena, ambientalista, da etnia krenak, do norte de Minas Gerais. Ailton é um dos nativos de raiz que mais tem lutado pelos direitos civis e de raiz dos povos da floresta no Brasil. Escreveu vários livros entre os quais “O Índio Cidadão” e “A Sociedade do Medo”, denunciando desigualdades e até a morte do seu povo, como os guarani kaiowá, no Mato Grosso, ao serem desqualificados como cidadãos , desprezados pela sua cultura e pelas agressões sofridas dentro dos próprios territórios
O acontecimento na Academia Mineira não mereceu muito a atenção da mídia, porque o precedente fora aberto no campo político, pelo novo governo, com a nomeação das índias Sônia Guajajara, para o novo Ministério dos Povos Originários, e de Joênia Wapichana, para a presidência da Funai, todas graduadas e pós graduadas em universidades dos brancos. Ailton Krenak é mestre em sociologia e pedagogia, tem ainda dois doutorados honoris causa pela Universidade Federal do Paraná e pela Universidade de Brasília. O currículo desses indígenas são de fazer inveja. Sônia Guajajara foi considerada pela revista “Time” uma das 100 pessoas mais influentes do mundo atual.
Na UnB estão matriculados hoje em cursos de graduação e pós-graduação mais de 200 representantes indígenas. No mesmo caso estão a Universidade São Paulo e a Universidade Federal do Mato Grosso. O constrangedor é que esses cidadãos de raiz são obrigados a fazer sempre o caminho dos brancos para serem reconhecidos.
Desde o chamado Descobrimento até a eleição do cacique Juruna para a Câmara dos Deputados, houve sempre um branco posicionando-se pelos índios. Políticos, acadêmicos, eclesiásticos e Ongs falavam por eles, nem sempre no interesse deles. Se compareciam aos eventos eram vistos como ornamentação. Por isso, só mais recente suas terras, invadidas pelos brancos ao longo da História, passaram a ser demarcadas como reservas, uma ambígua política pública que os coloca na condição de viver em território delimitado, com a perda total ou em parte dos espaços originais, parcelados com fazendeiros, garimpeiros,” sem-terra” e até empresários . Para proteger as comunidades indígenas da tal “marcha (pioneira) para o Oeste”, Darcy Ribeiro e os irmãos Vilas Boas propuseram a criação do parque Nacional do Xingu, processo que se estendeu por 10 anos (1952-1961). Abrigou 17 nações indígenas, ameaçados de perder suas terras de origem.
Escritores que escreviam sobre a cotidianidade dos povos da floresta, entre eles o próprio Darcy Ribeiro, José de Alencar, Antônio Calado, Ecilda Ramos e outros recebiam honrarias, pela disposição em ajudar a dar voz aos povos indígenas. Eram pessoas que valorizavam e valorizam o conhecimento indígena e sua maneira de viver. Os índios não recebiam nenhuma. O acesso de lideranças indígenas à Academia, privilégio de poucos, sinaliza para uma mudança de tempos e de costumes nesse, chamado, processo civilizatório.
Criada, em 1897, por iniciativa de Lúcio de Mendonça e Medeiros de Albuquerque, a Academia Brasileira de Letras ABL, tornou-se, desde o início, um generoso abrigo para nossa memória literária, acolhendo nos seus 125 anos de existência a alta intelectualidade brasileira, como Machado de Assis, Joaquim Nabuco , Artur de Azevedo , Olavo Bilac , Jorge Amado, Rachel de Queiroz, Manuel Bandeira, Oswaldo Cruz, Santos Dumont, Guimarães Rosa, João Cabral que formaram fileiras na Academia Brasileira de Letras. O grande problema era a aderência do vacilante perfil dos candidatos aos propósitos da Academia.
Machado de Assis e Joaquim Nabuco, também fundadores da ABL, defendiam critérios diferentes para os candidatos a ocupação das 40 cadeiras da instituição. O primeiro defendia uma orientação exclusivamente literário. Nabuco compreendia que a ABL devia abrigar diversas áreas, com qualidades literárias. A Academia poderia abrir suas portas para todos que se destacassem em áreas específicas da literatura e da cultura, desde que tivessem a publicação de, ao menos, um livro e um percurso reconhecido no campo intelectual. Mesmo assim, a ABL nunca elegeu um índio. E, no início do século passado, a população indígena brasileira registrava 2 milhões de cidadãos.
Por estratégia dos seus presidentes, a Academia veio, contudo, se adaptando aos cenários que se apresentavam. Ficou mais política, admitindo Getúlio Vargas, José Sarney, Roberto Campos, Marco Maciel, Roberto Marinho, Guimarães Rosa e alguns mestiços, como Domingos Proença e Gilberto Gil, mas nenhum índio. Austregésilo de Athayde, filho de desembargador de Pernambuco, chegou a ser biografado como descendente de índios. No período da ditadura militar, contrariando o pensamento da maioria dos acadêmicos, ela não imortalizou, entretanto, Juscelino Kubitscheck, que tanto desejou estar ali, e tinha méritos para tal. Havia vagas até para estrangeiros, e militares como o general Aurélio Lira Tavares e outros foram admitidos. Euclides da Cunha, jornalista e militar, entre outros foram membros da instituição. Em um novo momento, mais pop, imortalizou Gilberto Gil, Fernanda Montenegro, Paulo Coelho e outros mais. Contudo, Érico Veríssimo, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, filhos de escravos como Lima Barreto e Cruz e Souza – pai do simbolismo brasileiro – nunca foram absorvidos ali.
Ora, diante de um quadro histórico resumido como esse, o índio que nós temos na nossa cabeça é aquele que maioria dos nossos intelectuais e jornalistas descreveram etnocentricamente, a partir dos massacres e da reação à invasão de suas terras. A Constituição de 1988 tentou estabelecer um marco para uma refundação das relações do Brasil com os 305 povos originários, procurando lutar para manter suas culturas, a autonomia e os territórios.
Entretanto, mais que as disposições constitucionais, os fatos estão conduzindo o processo, em que pese a resistência dos brancos e dos interesses que envolvem as terras indígenas. Está começando a ser reconhecido que o Brasil precisa das populações indígenas para caracterizar sua identidade étnica. Ailton Krenak, Sônia Guajajara, Joênia Wapichana, Davi Kopenawa Yanomami, os irmãos Terena e outros tem enfrentado corajosamente os embates ambíguos dos civilizados. Embora exista desde 1909, a Academia Mineira de Letras merece, enfim, um “viva” estrepitoso pela iniciativa de tornar imortal um representante nativo, enraizado. Desde o Descobrimento, os krenak são assassinados em Minas Gerais, sem que os responsáveis sejam punidos.
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Aylê-Salassié F. Quintão – 80, Jornalista, professor, doutor em História Cultural. Vive em Brasília. Autor de “Pinguela: a maldição do Vice”. Brasília: Otimismo, 2018
E autor de Lanternas Flutuantes:
Parabéns pelo artigo. Não sabia dos escritores brasileiros famosos “não absorvidos “ pela Academia Brasileira de Letras. Obrigada por chamar nossa atenção para esse lado que considero “preconceito tupiniquim”.