Sortilégios do Lago de Como (ou A Recaída). Por Antonio Contente
… Era pouco mais que um lugarejo, às margens do Lago de Como, onde já estivera alguma vezes num aconchegante pequeno restaurante chamado “Per il Tempo dei Sogni”…
Aos 40 anos ele era alto executivo de uma multinacional em São Paulo, e estava em Milão a trabalho. Fazia meio Outono meio Inverno, o que já possibilitava que a Lombardia, em certas horas, fosse engolfada pelos ventos alpinos de congelar catedrais. Pinta um sábado, sombrio, céu encoberto. Quase ao fim da tarde ele pega o carro e resolve ir à Lierna, distante 50 quilômetros. Era pouco mais que um lugarejo, às margens do Lago de Como, onde já estivera alguma vezes num aconchegante pequeno restaurante chamado “Per il Tempo dei Sogni”. Ao chegar, o local se encontrava deserto; sentou numa mesinha de onde tinha boa visão da superfície lacustre. Pediu vinho, queijo, lascas de pão grosso.
Ele não havia nem secado a primeira taça quando ouviu o barulho de um carro chegando. Instantes depois entra no ambiente, sozinha, uma bela, belíssima mulher. Senta não muito distante dele. E também pede vinho. Quando a moça o olhou, ele levantou um brinde, ela sorriu. Ele então lhe disse, na língua nativa:
— Desculpe o meu italiano precário, sou estrangeiro. Mas eu a achei tão linda ao entrar, que aquela espécie de aura azul que cobre o lago parece que te envolvia. Numa cumplicidade da beleza disto aqui, beleza da terra; com você, beleza do céu.
— Quem disse que o seu italiano é precário? – Ela respondeu — É muito melhor do que o meu. Sou brasileira. E você, de onde é?
— Temos que admitir – ele falou agora em português – que os ingleses têm mesmo razão quando dizem que o destino é o caçador. Estamos sendo peças de uma armação dele.
Passaram a ocupar a mesma mesa, e foram sendo tomados, com a ajuda do vinho, pela noite que se adensava sobre o lago.
—Certa vez – ele apontou – faz alguns anos, daqui mesmo de onde nos estamos, vi se derramar sobre esse cenário tão lindo um luar.
— Num frio como esse?
— Não, Verão. Contam alguns nativos que em tal época do ano, talvez por causa do calor, sobem da superfície do lago certos vapores.
— Que vão virar nuvens?
— É o que todos pensam. Mas, na verdade, sobem para compor a alquimia das estrelas.
Continuavam só os dois no ambiente e, de repente, um violino, como num velho filme de Billy Wilder chamado “Amor na Tarde”, tocou a valsa “Fascinação”.
— Dança? – Ele perguntou.
— Para onde você quer me levar? – Ela estendeu a mão.
— Para não muito longe. É logo ali, e se chama “Angolo Dell’amore Eterno”.
Foi onde acabaram dormindo. E como o trabalho de ambos em Milão estava a apenas 50 quilômetros, mudaram no dia seguinte para a pousada.
Correram vários dias de amor intenso, com cada um sabendo do outro apenas o primeiro nome, e sem perguntas que quisessem ampliar este conhecimento. Até que naquela noite, durante o jantar, ela disse:
— O Natal se aproxima e meu trabalho está terminando. Vou passar as festas de fim de ano no Brasil.
— Não será outro o meu destino – ele bateu, na dela, a taça na qual o vinho acabava de ser colocado. Depois murmurou: um “E…”.
— Lembre-se – ela interrompe – que nós estamos sendo envolvidos numa trama do destino.
— Você quer, com isso, me lembrar o velho ditado de que até as pedras se encontram?
— Exatamente… Ainda somos novos, sabe-se lá o que nos reservam os próximos Outonos ou Invernos…
Na manhã seguinte, o homem levantou com muito cuidado, ela ainda ficou dormindo quando ele partiu. Ela, dois dias depois, também estava a caminho do Brasil, para a bela casa que possuía em Jacarepaguá, Rio de Janeiro, morada dela e da esposa já fazia algo como cinco anos. Ele, seguiu para o seu apartamento nos Jardins, na capital paulista, onde também morava com o marido. Cada um teve o seu Natal de alguma forma marcado por aquilo que pode ter sido apenas uma recaída. Ou, quem sabe, mais um dos sortilégios que fazem o encanto do Lago de Como. Lombardia, só 50 quilômetros distante de Milão.
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ANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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Caramba! De todos as suas inúmeras crônicas que tive a ventura de ler, sem dúvida a de final mais surpreendente!