Uma extrema direita à espera de um estudo. Por Fernando Gabeira
By Chumbo Gordo 2 anos ago(ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O ESTADO DE S. PAULO, E NO SITE DO AUTOR, www.gabeira.com.br, EDIÇÃO DE 3 DE FEVEREIRO DE 2023)
As invasões golpistas do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal (STF) já foram intensamente condenadas. No entanto, passado quase um mês, a sensação que tenho é de que foram pobremente analisadas.
Para dizer a verdade, a tentativa de golpe foi um fracasso, o esquema de segurança foi um fracasso, mas a interpretação não precisa também ser um fracasso.
Poucos se aventuraram a explicar por que os invasores foram a Brasília. A revista Crusoé contou uma história interessante: uma lavradora paranaense, com uma baixa renda mensal, participou da manifestação porque tinha medo de que o comunismo levasse um trator que ganhou de herança, sua única posse.
Por sugestão de Michele Prado, tenho lido, entre outros, uma autora americana que criou um laboratório para pesquisar a extrema direita, Cynthia Miller-Idriss. Como estão mais adiantados nas pesquisas, estou aprendendo muito, sempre preocupado com não aplicar mecanicamente o aprendizado no exame da extrema direita brasileira.
Lá, o medo de perder algo está relacionado com a presença dos trabalhadores estrangeiros. Há o medo de perder o emprego, de perder a cultura e até de perder o país, tornando-se uma minoria dominada.
Aqui, este medo de perder algo para estrangeiros quase não existe. A falta de habilidade do governo Lula ao anunciar investimentos no exterior abriu um flanco para a exploração da extrema direita. Como se trata apenas de um anúncio, sem explicar os ganhos que o Brasil poderia ter, voltam os velhos argumentos: o metrô de Belo Horizonte foi substituído pelo metrô de Caracas.
Pelo que observei em entrevistas e discursos populares na campanha, o medo mais forte no Brasil é o de perder algo para o comunismo: um trator, um carro Celta, um pedaço do próprio apartamento.
A extrema direita não trabalha apenas com emoções negativas, como a de perder algo, ou mesmo abrir mão de seus direitos para um povo estrangeiro. Ela explora o pertencimento a um espaço pátrio, aos símbolos nacionais, e transmite às pessoas a sensação de que devem lutar por algo mais alto: a sobrevivência do Brasil e o futuro de filhos e netos.
Ainda no prefácio de um de seus livros, Hate in the Homeland, Cynthia Miller assinala um fator que nunca foi muito estudado: o papel da pandemia na vulnerabilidade das pessoas às teses extremistas. De fato, foi um período de medo, ansiedade, depressão e, sobretudo, isolamento, de sobrevivência nas bolhas da internet.
Graças a um amigo, acompanhei a trajetória de uma presa, por meio do histórico de suas postagens no Instagram. A cada nova manifestação, ela parece mais certa da vitória final de sua luta. Era admiradora de Bolsonaro e, na campanha, mandava mensagens desesperadas para ele: Bolsonaro, por favor, não perca as eleições.
Depois da derrota, seguiu enrolada na bandeira do Brasil e dizia nas suas peregrinações: sei que estou deixando família para trás, muitas coisas, mas sei também que isto tudo é muito maior, é a salvação do Brasil.
De fato, deixou tudo para trás, marido, filho, os bichos de que cuidava nas ruas de uma pequena cidade mineira, e hoje está presa na Colmeia com uma centena de mulheres.
Alexandre de Moraes foi muito elogiado pela sua resposta enérgica. Assim agem os magistrados, dizem. Mas há questões que, às vezes, são complicadas para magistrados. São questões políticas, como esta de prender no mesmo espaço gente com treinamento militar para o golpe e alguns que vieram apenas porque ganharam uma viagem grátis.
Segundo a experiência histórica, as prisões são um excelente espaço de doutrinação. O mais inteligente, apesar de levemente mais caro, seria enviar a maioria para os seus Estados de origem.
Mas uma decisão desse tipo nasce de estratégias para enfraquecer a extrema direita. A ideia que o governo passa é de que entrou numa zona de conforto, em que qualquer desgaste é permitido por uma boa frase de efeito.
Moeda comum com a Argentina, sem preparação dos espíritos, afirmação de que o impeachment de Dilma foi um golpe – tudo isso fornece munição desnecessária para uma extrema direita que já dispõe, por vocação, de um imenso arsenal de fake news.
A presunção de que ficaram totalmente desarticulados depois da tentativa de golpe não se sustenta. O debate nas redes sociais continua intenso. A extrema direita conseguiu mobilizar milhares de pessoas para a campanha no Senado, na defesa da candidatura de Rogério Marinho, que, por sua vez, promete enfrentar o Supremo Tribunal Federal.
As eleições de 2026 parecem muito distantes. Mas não estão. No passado, todos se acalmavam e voltavam ao assunto no ano eleitoral. Agora, há disputa, cada passo tem de ser medido num outro padrão: quem se fortalece, quem se enfraquece para a luta decisiva.
Será muito difícil, creio, enfrentar uma direita digital com reflexos analógicos. Mas isso até é secundário. Será mais difícil ainda se houver subestimação e um olhar apenas fixado nos aspectos folclóricos da extrema direita. É um movimento social e conhecê-lo melhor é um imperativo de nossos tempos.
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Fernando Gabeira*– é escritor, jornalista e ex-deputado federal pelo Rio de Janeiro. Atualmente na GloboNews, como comentarista. Foi candidato ao Governo do Rio de Janeiro. Articulista para, entre outros veículos, O Estado de S. Paulo e O Globo, onde escreve às segundas. Programas especiais – reportagens – para a GloboNews. Semanalmente, o podcast Fala, Gabeira! – no YouTube
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