A mesa de Deus, um livro para degustar. Por Edmílson Caminha
… A mesa de Deus (Rio de Janeiro : Record, 2022), da pesquisadora e escritora Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti. Será, doravante, citação obrigatória nos estudos do gênero que se fizerem, aqui e no estrangeiro…
É grande a bibliografia mundial sobre a história da alimentação, o preparo da comida, os valores antropológicos, sociológicos, culturais e religiosos do que não aparenta mais do que a cotidiana providência de saciar a fome e aplacar a sede. A esses livros junta-se, agora, A mesa de Deus (Rio de Janeiro : Record, 2022), da pesquisadora e escritora Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti. Será, doravante, citação obrigatória nos estudos do gênero que se fizerem, aqui e no estrangeiro.
Foram, segundo a autora, dez anos de sabe-se lá quantas leituras do Texto Sagrado, cuidadosamente registradas, como talvez nunca antes no Brasil: “Ler e reler a Bíblia, anotando todas as referências sobre o tema. Estudar os hábitos alimentares do povo hebreu, nos diversos momentos de sua trajetória. No Antigo e no Novo Testamento”. Apresentador da obra, escreve o cardeal português Dom José Tolentino Mendonça, prefeito, no Vaticano, do Dicastério para a Cultura e a Educação:
Para os leitores da Bíblia, o livro de Maria Lecticia oferecerá estratos complementares de conhecimento: constitui uma espécie de micro-história da Bíblia (…). Mas, ao mesmo tempo, é um livro de espiritualidade bíblica, um compêndio de exegese, uma refeição da Palavra. Não é apenas um ensaio exaustivo sobre a mesa bíblica: é um convite a entrar, um abrir da mesa, uma coreografia de odores, uma prática do saborear.
Sentimento já expressado por seu compatriota Eça de Queiroz:
A mesa constitui sempre um dos mais fortes, senão o mais forte, alicerce das sociedades humanas. Constitui a melhor e a mais solene cerimônia que os homens acharam para consagrar todos os seus grandes atos, imprimindo-lhes um caráter de união e de comunhão.
Poucas obras se oferecem tão ampla e substanciosamente para uma pesquisa sobre alimentos quanto a que reúne a palavra dos profetas e dos evangelistas: vai do fruto proibido (a maçã, a formar com a cobra mal disfarçados indicadores da relação sexual inaugurada por Adão e Eva) até a Última Ceia, em que, estranhamente, Cristo põe-se com os apóstolos de um só lado da mesa, como a posar para o afresco pintado por Leonardo da Vinci. Na missa católica, o sacramento da comunhão chega ao extremo de um rito simbolicamente antropofágico, quando Jesus nos convida a comer o pão do seu corpo e o vinho do seu sangue.
… A mesa de Deus transcende as fronteiras da história e da investigação bíblica para chegar à filosofia, à mitologia, à literatura, à etimologia. Em meio a informações sobre carnes, ervas e temperos, o registro de que companheiro vem de cum panis, aquele com quem se partilha o alimento…
Maria Lecticia percorre esses milênios da história humana com atenção e minúcia de admirável investigadora: beneditinamente, anota 3.594 menções bíblicas a animais, 343 a espécies de plantas e 230 a vinho. A ilustrar-lhe as informações, referências a Gilgámesh e a Os Lusíadas, a São Tomás de Aquino e ao Padre António Vieira, a Guerra Junqueiro e a Fernando Pessoa. Na relevante e numerosa bibliografia que apresenta aos leitores, destacam-se Gilberto Freyre (Açúcar), Câmara Cascudo (História da alimentação no Brasil), Lévi-Strauss (O cru e o cozido), Eva Celada (Os segredos da cozinha do Vaticano) e Chiara Frugoni (Invenções da Idade Média: óculos, livros, bancos, botões e outras inovações geniais) – este, a propósito dos assentos sem os quais não haveria como abancar-nos à mesa.
Sublinha a escritora o respeito e a admiração a que, desde a Antiguidade, fazem jus os cozinheiros:
Na Grécia Antiga, eram valorizados por quase todos os grandes pensadores. Os heróis de Homero – em Corfu, Ítaca ou Troia – preparavam suas próprias refeições. Quem cozinhava era chamado mageiro, a mesma palavra que também usavam para designar sacerdote, não por acaso, com a mesma raiz etimológica de mago. Platão chegou a comparar a arte da oratória à da culinária. (…) Tanto sucesso faziam os cozinheiros que, na época do imperador Tibério Cláudio (reinou de 14 a 37), em Roma, havia mais escolas de cozinha que de filosofia.
A mesa de Deus transcende as fronteiras da história e da investigação bíblica para chegar à filosofia, à mitologia, à literatura, à etimologia. Em meio a informações sobre carnes, ervas e temperos, o registro de que companheiro vem de cum panis, aquele com quem se partilha o alimento. A propósito da coroa de louro, usada por heróis gregos, imperadores romanos e atletas olímpicos, aprende-se com Maria Lecticia: “Suas folhas (em latim laurus) acabaram significando excelência no desempenho, daí vindo laureado. Dos frutos (em latim bacca) veio bacca laurea – e daí, em francês, bachelier (bacharel) e baccalauréat (bacharelado)”.
Poeta que viveu antes de Cristo, Horácio, para quem “nenhum poema escrito por quem bebe água pode durar para sempre”, traz-nos à lembrança o nosso Vinicius de Moraes, que dizia não saber de nenhuma grande amizade feita no balcão de uma leiteria… Louvores às bebidas, fermentadas ou destiladas, que aquecem o corpo e estimulam o espírito, daí a observação de Nietzsche:
Havia entre os antigos romanos a crença de que a mulher só incorria em pecado mortal de duas maneiras: cometendo adultério ou bebendo vinho. Catão, o Velho, pretendia que o costume de beijar-se entre parentes tinha essa origem. Era um meio de vigiar as mulheres; o beijo significava: cheiram a vinho?
Tantas e tão enriquecedoras notas atestam os laços profundos entre a paixão gastronômica e o bem pensar, o saber escrever. Pena que, ao citar o mestre da culinária romana Marcus Gavius Apicius (25 a.C. – 37 d.C.), Maria Lecticia não tenha prestado a homenagem a que tem direito Roberto Marinho de Azevedo Neto (1941-2006), crítico de gastronomia do Jornal do Brasil entre 1975 e 1997, quando escreveu belas crônicas sob o pseudônimo de Apicius, cuja identidade verdadeira era convenientemente ignorada por restaurateurs, mâitres, garçons e por quem o lesse. Tome-se, como ilustração, o primeiro parágrafo de “Nos bistrôs”:
Gosto de novidades. Principalmente as já sabidas. Dirá o leitor que novidades assim… Respondo-lhe que assim não me agridem. Por certo, as que já vimos demais aborrecem um pouco. Soam como uma voz conhecida que no telefone grita, sorridente: “Adivinha quem é!” Mas as novidades intermitentes… Estas surpreendem e ainda trazem consigo um grau suficiente de lembranças que falam ao paladar. Pelo menos ao meu. Que os gostos são mais variados do que pensam os sensatos. Mesmo sei de pessoas que vão ver filmes de Wim Wenders com prazer. Pois há lugar de tudo sob o Sol, que é estrela muito compreensiva (ainda bem, piedoso leitor, senão estaríamos literalmente fritos).
Ao evocar o julgamento e a crucifixão de Jesus, caberia mencionar o romance Bar Pandera: redescobrindo o caminho (Brasília : LGE, 2008), em que o pernambucano Frederico Lucena de Menezes desmitifica a figura de Barrabás, liberto por Pôncio Pilatos ante o clamor público em sua defesa. Para o romancista, o povo pedia a salvação de Bar Abbas (o Filho do Pai, em aramaico), com o que, absolvido pelo governador da Judeia, o Deus-Homem não morreria na cruz, a Santa Ceia não teria sido a última e a história da cristandade se narraria de outra maneira…
Na conclusão, é a própria Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti quem melhor sintetiza A mesa de Deus:
A história do povo hebreu, como se viu, nos conta uma forte ligação entre alimento e fé. Com a religião (do latim re-ligare) sendo fator decisivo na formação dos hábitos alimentares daquela gente. Revelando história, geografia, clima, costumes, organização social, crenças. Influenciando modos de sentir, de pensar e de agir. Determinando comportamentos e preferências. Compreendendo a importância da partilha e da comunhão. Reforçando gestos de perdão, hospitalidade, amizade. Com Jesus pregando a inclusão de todos, em volta dessa mesa. E assim, através dos ensinamentos da Bíblia, pudemos contar a história dos alimentos na mesa de Deus.
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Edmílson Caminha – Cearense. Escritor, jornalista, professor de literatura brasileira e de língua portuguesa
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