O terrorismo do ângulo do direito brasileiro. Por Manoel Gonçalves Ferreira Filho
… A razão de ser do terrorismo é de ordem psicológica, ou, aprofundando, de ordem psicossocial. Com efeito, o seu objetivo é – como a designação já sugere – instaurar o pavor na comunidade alvo, temor que naturalmente leva à busca de paz a preço alto, ou a qualquer preço…
O fenômeno do terrorismo é, para o mundo contemporâneo, uma grave ameaça, seja no plano internacional, seja no plano interno dos Estados e consequentemente para a vida e a tranquilidade dos povos. Sua repressão, por isso, é uma exigência para todo e qualquer Estado. E praticamente todos a preveem.
No Estado de Democrático de Direito, como o é o Brasil, não pode haver essa repressão sem que os atos terroristas estejam definidos em lei que também lhe fixe a pena. É o que se exprime no brocardo bem conhecido de todos os que têm uma noção de direito – “não há crime, nem pena sem lei.” (Os antigos gostavam de exprimi-lo em latim “nullum crimen, nulla poena sine lege”.)
Sem dúvida, a definição de um crime e da pena correspondente é sempre tarefa complexa, porque todo delito apresenta diversas faces, mais ou menos graves e o próprio fato delituoso, nem sempre é reconhecido por todos como tal.
Um caso típico é o do terrorismo. A análise do fenômeno é complexa, porque ele tem várias faces. De fato, por um lado é um fenômeno de ordem política, mas envolve, por outro, um aspecto psicossocial, e enfim se reflete numa problemática jurídica, interna e internacional.
Ou seja, o terrorismo é basicamente uma ação política, seja para abalar o poder político estabelecido, seja para levar à implantação de outra forma de poder, mormente com a substituição do quadro ou “classe” dirigente. Assim, é fácil compreender por que os adeptos de certas ideologias o admitem, ao menos para os casos que servem à “causa” e outros, não, e o condenam e querem vê-lo punido.
A razão de ser do terrorismo é de ordem psicológica, ou, aprofundando, de ordem psicossocial. Com efeito, o seu objetivo é – como a designação já sugere – instaurar o pavor na comunidade alvo, temor que naturalmente leva à busca de paz a preço alto, ou a qualquer preço.
O terrorismo internacional claramente visa a implantar no “inimigo” o temor, para que seu enfrentamento seja visto como uma tarefa custosa e, sobretudo, perigosa para a comunidade que o sofre. Exemplo típico é o 11 de setembro, em que aviões foram instrumento de agressão contra os norte-americanos empenhados numa repressão à expansão de um islamismo radical.
O terrorismo interno, embora também vise levar um Estado, seus dirigentes e mormente seu povo a ressentir o pavor, apresenta, todavia, duas espécies.
Numa, o seu fim é meramente abalar o poder estabelecido, convencê-lo que a paz só pode ser implantada por concessões em favor dos autores e seu grupo de aliados. Tipicamente, são os assassínios de dirigentes, as explosões de bombas, que largamente foram usadas pelo anarquismo, no século XIX, como uma demonstração de protesto ou insatisfação. E o foram também promovidos por movimentos independentistas logo após a Segunda Guerra Mundial para demonstrar o desejo de romper vínculos coloniais.
Noutro, os atos de terrorismo têm um objetivo mais profundo. Constituem a primeira fase de uma ação de uma “revolução” que pretende tomar o poder. Esta foi incorporada àquilo que se designou como “guerra revolucionária”. Foi largamente empregada por grupos comunistas pelo mundo afora e no Brasil ocorreu na década de sessenta. Por exemplo, com a bomba no Recife, explodida no aeroporto em 25 de julho de 1966, que fez mortes de militares, e de civis que nada tinham a ver com a política nacional.
Obviamente esse fenômeno não pode, na atualidade, ser ignorado pelo Estado, ao menos para assegurar a seu povo, segurança quanto à vida e seus direitos. E não é na imensa maioria dos Estados contemporâneos. Exemplo entre ele, os Estados Unidos da América que responderam aos atentados de 2001 com uma legislação rigorosa e abrangente – o Patriot Act de 2001, seguido do Patriot Act de 2003.
… Que são, juridicamente falando, “movimentos”? Não há definição legal sobre o que sejam. São associações de fato? São instrumentos destas, sejam elas formais ou eventuais? Podem ser usados com a finalidade de violar as leis? A Constituição? De coagir os Poderes da República?…
No Brasil, há mais de meio século existe uma legislação sobre a segurança nacional que visa a repressão ao terrorismo, mormente como preliminar da guerrilha e, após, da guerra revolucionária aberta.
Sem invocar textos anteriores, basta lembrar a Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1982 – a chamada Lei da Segurança Nacional – que editava normas tendo em vista a repressão de atos terroristas. Foi ela recentemente revogada pela Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021, em parte objeto de vetos não ainda apreciados pelo Legislativo, visando não o terrorismo, mas fake News e o agravamento de penas para agentes públicos. Ela acrescentou um novo Título ao Código Penal de 1941, título este intitulado “Dos crimes contra o Estado Democrático de Direito”.
Ora, destaque-se nessa Lei o art. 359-T que concerne diretamente ao terrorismo:
“Não constitui crime previsto neste Título a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais”. (Sublinhei.)
Aborda, portanto, atos que podem ser instrumento de terrorismo, mas para descaracterizá-los como tal.
Há. Sem dúvida, uma lei especial e específica sobre o terrorismo.
Trata-se da Lei nº 13.260, de 16 de março de 1916, promulgada pela “presidenta” Dilma Roussef. Na ementa desta nela se lê que regula o disposto no art. 5º, XLIII da Constituição Federal, “disciplinando o terrorismo”. E, também, segundo esta ementa, tal lei pretende reformular “o conceito de organização terrorista”.
Vale brevemente examinar esta Lei.
No art. 2º conceitua o que é terrorismo:
“O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social e generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.”
Note-se, e sublinhe-se, que assim estão excluídas do terrorismo ações políticas. Tal fato é paradoxal, porque, como todos avaliam, que a forma mais grave de terrorismo são as ações políticas que ferem o Estado e a ordem política que a Constituição consagra. Está nisto uma originalidade do novo direito brasileiro, que toma posição oposta à legislação antiterrorista do mundo inteiro. Esta, em primeiro lugar, se preocupa com e visa a punir o terrorismo político.
Adiante, nesse mesmo artigo, vem um § 2º que completa o quadro. Diz ele:
“O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei”.
De novo transparece o objetivo de descaracterizar como terroristas pessoas e grupos, ou “movimentos” que pratiquem atos que poderiam ser enquadrados como atos de terrorismo.
Este preceito, com efeito, libera os participantes de manifestações políticos, sociais, etc. de qualquer acusação de terrorismo. A restrição do objetivo nada vale porque, por exemplo, toda e qualquer manifestação política, ou social, pode ser facilmente revestida do objetivo de “contestar” quaisquer “direitos, garantias e liberdades constitucionais”.
Ademais, cabe perguntar se pode qualquer “movimento”, por exemplo, violar impunemente a Constituição, atentando, por exemplo, contra a liberdade de consciência, a de expressão do pensamento, o direito de propriedade, a segurança individual, etc.
O direito constitucional comparado diria que não e as Cortes Constitucionais fulminariam por inconstitucionalidade a licença ensejada pelas disposições acima referidas.
Cabe, enfim, mencionar uma dificuldade interpretativa. Que são, juridicamente falando, “movimentos”? Não há definição legal sobre o que sejam. São associações de fato? São instrumentos destas, sejam elas formais ou eventuais? Podem ser usados com a finalidade de violar as leis? A Constituição? De coagir os Poderes da República?
Para sabê-lo. É preciso aguardar a exegese dos ilustres e novos constitucionalistas e a jurisprudência do Pretório Excelso, que significaria, caso o aceite, a efetivação de uma “nova” Constituição que não a de 1988 em vigor.
De qualquer forma, cabe uma tímida conclusão já indicada mais acima:
Acentua-se a originalidade do “novo” direito brasileiro, em face da prática mundial. Ele tolera, ou permite, o terrorismo.
Donde se seguem duas perguntas.
Uma:
Será condizente com a democracia essa originalidade?
E outra:
Por que o terrorismo é, realmente, combatido no Brasil?
São Paulo, 24 de janeiro de 2023.
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Manoel Gonçalves Ferreira Filho – Professor Emérito de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
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