O lado sombrio da festa da posse. Por Aylê-Salassié F. Quintão
… Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-operário, civil, já em estado de “paz e amor” tirou a manhã para receber os chefes de Estado, embaixadores e autoridades estrangeiras que vieram prestigiar a sua posse, durante a qual prometeu, enfaticamente, a volta dos empregos. Concomitante, entretanto, no Planalto e nos ministérios, o chamado “passaralho” fazia uma devassa na estrutura e na burocracia do Estado, gerando pânico entre chefes, chefetes e servidores, sobretudo entre aqueles que ocupavam cargos de confiança…
Sem encerrar o mandato presidencial, pelo qual tanto lutara entre os companheiros de caserna, no dia 17 de dezembro de 1969, morria o general Arthur da Costa e Silva. Com o corpo ainda no necrotério, o 18 de setembro amanheceu com todo mundo preocupado e já discutindo quem o substituiria e, dentro do aparelho burocrático do Estado, quem sobreviveria no emprego. Era o assunto corrente, mesmo em se tratando de uma suposta e coesa ditadura militar.
No primeiro dia após a posse, em 1º de janeiro de 2023, do novo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-operário, civil, já em estado de “paz e amor” tirou a manhã para receber os chefes de Estado, embaixadores e autoridades estrangeiras que vieram prestigiar a sua posse, durante a qual prometeu, enfaticamente, a volta dos empregos. Concomitante, entretanto, no Planalto e nos ministérios, o chamado “passaralho” fazia uma devassa na estrutura e na burocracia do Estado, gerando pânico entre chefes, chefetes e servidores, sobretudo entre aqueles que ocupavam cargos de confiança.
Confiar em quem agora? Mudou o governo, mudam-se as estruturas políticas e administrativas, dirigentes e partidos de sustentação, revelando comportamentos cruéis, dignos de um Pantagruel, personagem glutão criado pelo escritor francês, François Rabelais (1494-1553). Visualizam na máquina do Estado milhares de demissões e, com elas, cargos vagos, para acomodar os cabos eleitorais, amigos e amantes. Seria isso uma das razões porque a gestão das políticas públicas são tão instáveis e inconsistentes. Cada novo governante, seja no âmbito federal, estadual ou municipal, procura aparelhar e adaptar a administração do Estado ao seu gosto e, assim, o País patina pela história, sem sair do lugar: avança no final dos quatro anos e, quando tudo está configurado, retroage com a mudança de governo.
A maioria das estruturas institucionais configuradas são desmontadas e os servidores nos seus devidos lugares são demitidos ou remanejados. As fotografias do Presidente, dos ministros e diretores, que alimentam o lado cívico, são trocadas, os endereços ministeriais se alteram, alguns saem da Esplanada, e as políticas públicas tomam outras direções.
Passamos agora de 23 para 37 ministérios. Numa mudança radical como essa – diz-se: da direita para a esquerda – os servidores de carreira aguardam confusos os chefes que desembarcam por ali, para assumir políticas públicas sobre as quais alguns mal ouviram falar. As maiores vítimas sãos ministérios da Educação, da Agricultura, do Meio Ambiente e da Cultura e agora também dos Povos Indígenas e do Desenvolvimento (Reforma) Agrário. Os conflitos jurídicos e as justaposições de funções confundem e até conflitam entre si.
Quem sai procura sabotar o substituto. A gestão e a administração física e de projetos vira uma confusão. Cada um que chega proclama sua lealdade ao novo governo e a desconfiança nos que ficaram mesmo sendo funcionários de carreira.
O desmonte das máquinas gestoras leva à paralisação, às vezes, de até um ano em programas, experimentações e pesquisas, algumas prioritárias. No final dos doze meses, o Estado ressurge como aquele paquiderme rabeleriano e já como novos aspirantes à sucessão. Não se trata só de desmontar e montar o exército de reserva. Acabam de ser criados 14 novos ministérios. O primeiro ano de governo é, desta forma, de reorganização do Estado, e o ajuste aos interesses dos vencedores, com a realocação ministerial de milhares de programas e recursos, um grande número mantidos com financiamentos originários do exterior – questão Amazônica – e outros compromissados em relações comerciais externas e acordos com a base de apoio no Congresso.
Com o suporte de um ministério de Planejamento, Gestão e Administração, assessorado pelas famigeradas Divisões de Segurança e Informação (DSIs), essas questões não preocupavam os governos militares. Mudavam-se um ou outro titular ministerial, mas a máquina tecnocrática permanecia azeitada, procurando dar consequência aos planos de desenvolvimento. Delfim Neto, Mário Simonsen, João Paulo dos Reis Veloso, Ernâne Galveas ficaram no poder por mais de dez anos. Contudo, entre os militares havia vieses diferentes para a governabilidade. Só começou a mudar, quando o partido da oposição (MDB), ganhou as eleições na maioria dos estados (1978). Até então, os militares navegavam tranquilos na chefia do Estado, amparados por um forte aparelho repressivo.
Apesar dessa aparente estabilidade, eles não conseguiram dar posse a Pedro Aleixo, vice-presidente, e o governo foi entregue a uma Junta Militar, constituída pelos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Os três funcionaram, no Governo, em suposta convergência de opinião, por 60 dias, até haver um consenso em torno do nome do general Garrastazu Médici, então chefe do famigerado Serviço Nacional de Informações(SNI). O Exército não abria mão da liderança.
Como repórter da Folha de S. Paulo, cobrindo a área ministerial, assisti, nessas trocas de governo, a situações dramáticas, levianas e traiçoeiras. Hoje é a primeira semana da posse do novo governo, que eu chamo de “dia seguinte”, quando o poder se dissolve e os antes poderosos, cheios de mordomia e de convicções, mesmo sem votos, perdem aquela áurea de autoridade, e vão parar no limbo, nas ruas para viver como cidadão comum, tomando cafezinho nos botecos.
Há os que sabem perder, mas há também os incautos que incorporaram no sangue aquele espírito autoritário e litúrgico de “mandão” e” sabichão”. Demitidos, perdem, de um dia para o outro, o poder e as vantagens privativas oferecidas em bandeja pelo Estado. O salário é o primeiro a desaparecer. Passam a ter de dirigir o próprio carro, pagar do bolso as refeições em restaurantes e hotéis. Resta, para alguns, a compaixão de assessores, secretários, seguranças, ascensoristas e até da moça do cafezinho, também demitidos; outros, agora, os vêm com desconfiança; outros ainda com raiva, desobrigando-se da obediência cega do “puxa-saquismo”.
E assim, lá vão todos… Desempregados.
Os novos dirigentes chegam cheios de sonhos. Pinçados no mundo da política, a maioria não conhece bem os meandros, as reponsabilidades e até as funções do Estado. Confundem tudo. De modo que, as festas da posse e da transmissão de cargos não conseguem esconder o cenário desolador, sombrio mesmo, que se estabelece, silenciosamente, na Praça dos Três Poderes, dentro daqueles edifícios verdes.
Tudo coincide com o fim da Era Pelé, menino pobre que, com ousadia e criatividade pessoal, contribuiu para que os brasileiros orgulhassem do seu país com todas essas ambiguidades, sem a necessidade de fazer guerra com ninguém.
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Aylê-Salassié F. Quintão – Jornalista, professor, doutor em História Cultural. Vive em Brasília. Autor de “Pinguela: a maldição do Vice”. Brasília: Otimismo, 2018
E autor de Lanternas Flutuantes: