Jorge Bodanzky: É tudo verdade. Por Amir Labaki
…Neste quase meio século que se seguiu, ninguém documentou a Amazônia como Bodanzky -e de tantas formas…
PUBLICADO ORIGINALMENTE NO VALOR, EDIÇÃO DE 23 DE DEZEMBRO DE 2022
https://valor.globo.com/eu-e/coluna/amir-labaki-quem-e-o-cineasta-brasileiro-que-filma-a-amazonia-como-ninguem.ghtml
*** COM FOTOS ESPECIAIS
Jorge Bodanzky, um dos principais cineastas e fotógrafos brasileiros, alcança nesta semana (dia 22) a marca dos 80 anos. Em meio a justíssimas celebrações, como as organizadas pelo recente Festival de Brasília e pelo IMS-SP, é ele quem nos presenteia, elegante e modesto como hábito, mantendo intensa produção. Prepara-se para lançar em salas, depois do intenso circuito em festivais deste final de ano, um novo e urgente documentário, “Amazônia, A Nova Minamata?”, sobre a devastadora contaminação dos Munduruku por mercúrio, utilizado por garimpos ilegais no território da tribo amazônica.
Em agosto passado, o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro elegeu certeiramente como melhor série documental de 2021 “Transamazônica, Uma Estrada para o Passado” (HBO), dirigida por ele e Fabiano Maciel, uma extraordinária radiografia em seis episódios, quilômetro a quilômetro, da mutiladora rodovia símbolo do projeto de integração nacional a qualquer preço da ditadura militar nos anos 1970. Há apenas dois anos, Bodanzky concedera-se um raro desvio de sua produção essencialmente amazônica para partilhar suas memórias de estudante em “UnB: Utopia Distopia”, no qual contrasta a alegria dionisíaca dos anos áureos da universidade, criada por Darcy Ribeiro durante o governo João Goulart, e o impacto demolidor sobre os corações e mentes de sua geração, e sobre a própria UnB, da sanha obscurantista do regime autoritário instaurado em 1964.
Nascido em São Paulo de pai e mãe austríacos, judeus não praticantes que emigraram de Viena para cá em 1937, Bodanzky credita àquele período de dois anos que passou em Brasília, a partir de 1963, “a descoberta do Brasil e da cultura brasileira”. Alguns anos antes, durante o I Seminário de Filme Documentário em São Paulo, assistir ao inovador curta “Aruanda” (1960), de Linduarte Noronha, fora o “marco zero da minha decisão de fazer cinema”.
Jovem fotógrafo de talento, preocupado com o acirramento da repressão pela ditadura, Bodanzky partiu para a Alemanha em 1966 com uma bolsa para aperfeiçoar-se em Colônia, curso logo trocado por aulas de direção de fotografia cinematográfica com o mestre exilado tcheco Jan Spáta (1932-2006) no Institut fúr Filmgestaltung dirigido por Alexander Kluge em Ulm. De volta ao Brasil, fotografou clássicos da produção independente como “O Profeta da Fome” (1969), de Maurice Capovilla, e “Hitler Terceiro Mundo” (1970), de José Agripino de Paula, e solidificou uma carreira como fotojornalista. De uma reportagem para a revista Realidade, em fins da década de 1960, percorrendo a rodovia Belém-Brasília, germinaria quase uma década mais tarde sua primeira e incontornável obra-prima.
Uma produção para TV alemã, codirigida por Orlando Senna, “Iracema – Uma Transa Amazônica” (1974) disseca o mito do “Brasil Grande” a partir do envolvimento de uma jovem prostituta e um caminhoneiro cínico tendo a destruição da floresta como cenário. Combinando documentário e ficção, inspirado pelos cinemas de Jean Rouch e John Cassavetes, é o tipo ideal do método de “improvisação planejada” caro a Bodanzky.
Neste quase meio século que se seguiu, ninguém documentou a Amazônia como Bodanzky -e de tantas formas, da fotografia ao CD-Rom (lembra-se?), da câmera de filmar 16mm ao celular. Talento e inquietação levaram seus filmes a outros universos, da ficção histórica “Os Mucker” (1978), co-dirigida por Wolf Gauer, à revisita das veredas brasileiras do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (À Propos de Tristes Tropiques, 1990). Tudo somado, os prediletos do próprio Bodanzky são “Iracema” e “Terceiro Milênio” (1981, codireção de Gauer), uma espécie de “river movie” seguindo a campanha entre folclórica e messiânica a governador do senador amazonense Evandro Carreira (1927-2015).
Num debate on-line no ano passado, perguntei-lhe sobre sua relação com a Amazônia. Assim falou Bodanzky: “Não moro na Amazônia, mas trabalho lá. Então, não é como se eu voltasse, é uma observação contínua. Não foi uma escolha, são coisas que acontecem em nossas vidas”.
“O meu foco na Amazônia, o meu maior interesse, são as pessoas. Todos os meus filmes são sobre pessoas que vivem na Amazônia. É a parte mais importante para mim”.
“Eu não sou médico ou técnico. Sou cineasta, e cineastas contam histórias. Sou um contador de histórias, e histórias envolvem pessoas. (…) Todo trabalho na Amazônia não é um novo trabalho, mas a continuação dos outros. Não é isolado. Eu digo que o meu trabalho é um painel”. Que viva Bodanzky!
– AMIR LABAKI – crítico de cinema, jornalista, curador e escritor
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(*** Fotos especiais feitas e gentilmente cedidas por Antonio Silvio Lefèvre, colaborador do Chumbo Gordo, amigo de Bodanzky – no aniversário de Jorge Bodanzky, que foi celebrado na casa da Laís Bodanzky, a filha e também cineasta. Tem uma só do Jorge com o bolo de 80 anos, outra dele com a Lais e outra dele com a esposa Marcia Neves Bodanzky e com o amigo Lefèvre), além de cenas de trabalho e de filmes.
Veja também:
https://www.chumbogordo.com.br/397420-guten-tag-herr-freud-bom-dia-sr-freud-por-antonio-silvio-lefevre/
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