Quando R$ 100,00 era grana. Por Antonio Contente
…resvalando a vista pelo chão do estabelecimento vazio, avistou, junto ao pé de uma das mesas, dobrada, uma nota de 100. Seu coração imediatamente deu uma disparadinha e seu primeiro impulso, diga-se a verdade, foi se curvar a juntar…
O Plano Real foi a décima moeda brasileira e seu lançamento ocorreu no dia primeiro de julho de 1994. Quando apareceu a nota de 100, azul como céu de brigadeiro, o valor dela, realmente, era grande. Não suficiente para adquirir um carro, é verdade; o impressionante bagarote, contudo, dava, com direito a sobras, para uma família pagar as contas essenciais do mês, fazer supermercado pros 30 dias e ainda esbanjar em alguns supérfluos num mundo novo em que um pãozinho custava apenas R$ 0,05. Nessas condições, aquele homem que tinha rotina despojada, de pessoa sem grandes voos, só poderia mesmo tomar um susto ao entrar, certa manhã, no bar de costume para tomar seu chopinho de antes do almoço.
Ele fazia isso de pé, junto do balcão, saboreando a espuma cremosa. De repente, resvalando a vista pelo chão do estabelecimento vazio, avistou, junto ao pé de uma das mesas, dobrada, uma nota de 100. Seu coração imediatamente deu uma disparadinha e seu primeiro impulso, diga-se a verdade, foi se curvar a juntar. Mas se limitou a plantar seu pezão de sapato 44, bico largo, sobre o dinheiro. Arrastando-se novamente para junto do balcão.
Agora, contrariando o hábito de somente um chopinho de antes do almoço, pede outro. Afinal, precisava ganhar tempo para embolsar, sem chamar atenção de ninguém, a bufunfa que mantinha capturada sob a sola.
Ao chamar o terceiro chope o funcionário do balcão, que o conhecia há séculos, comenta, em tom de pergunta:
— Alguma comemoração, doutor?
— Pode ser… – O camarada vagueia.
Nessa altura dos acontecimentos o boteco enchera, de forma inapelável. Inclusive junto do balcão, ao qual nosso herói permanecia grudado, literalmente grudado com o enorme pé em cima da fantástica nota azul.
“Não, agora não dá – ele pensa – se eu apanhar agora metade desse povo que tá aqui vai ver”…
Enquanto isso os três chopes que o camarada já tomara com o estômago vazio passaram a conferir a tonteirinha leve, tradicional. Nisso seu olhar resvala sobre o relógio na parede, o que o leva a concluir que não poderia permanecer ali para sempre perdendo, inclusive, a hora do almoço.
Assim, a resolução, afinal, saiu: pegaria a grana de qualquer jeito. E ia se abaixar com este objetivo, no instante em que um sujeito encosta ao lado e pergunta ao homem do caixa se ninguém havia encontrado uma nota de 100 que caíra de sua carteira no instante em que por ali passara para um café e um pão com manteiga. Era funcionário de um dos escritórios dos prédios ao redor da praça.
— Só pode ter caído aqui – argumenta – foi o único lugar que entrei antes de ir tirar uns xerox ali do outro lado da avenida. E o dinheiro não é meu, é da firma, tenho duas contas pra pagar no banco.
Com o pé sobre o numerário, o que o mantinha escondido ouvia. Mede o sujeito da cabeça aos pés, e conclui que ele poderia ser tão somente contínuo de algum escritório e, diante de sua cara de angústia, também angústia passou a sentir com o estresse do coitado. Dirige-se a ele:
— Olha, eu, se fosse você, dava uma olhadinha boa aqui pelo chão.
Fala isso depois de atirar uma nota para pagar os chopes e sai, sem olhar para trás. Na mesma calçada diante do bar pega um táxi que ia passando, quando a cédula azul, que ficara grudada com algum resto de chicletes na sola do sapato enorme, cai à sua frente. Já sem remorsos se curvou. Pegou e guardou.
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ANTONIO CONTENTE –
Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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