Protesto palerma. Por José Horta Manzano
… Na inconsciência de seus jovens anos, os ativistas não se deram conta de que, ao despejar baldes de tinta na frente do prédio, estavam agredindo a natureza que juram defender. Não aprenderam que toda ação traz consequências. Aqui estão algumas delas…
A ilustração mostra a entrada do célebre Teatro alla Scala, de Milão. Essa porcariada que aparece no chão não é resultado de acidente em que o andaime bambeou e o balde do pintor se espatifou junto ao meio-fio. Antes fosse. Vamos voltar o filme e contar a história.
Ontem na Scala, teatro italiano de maior prestígio, era dia da abertura da temporada lírica. No programa, a ópera Boris Godunov, do compositor russo Modest Mussorgski. Personalidades importantes tinham confirmado presença: o presidente e a primeira-ministra da Itália, assim como Ursula von der Leyen, a presidente da Comissão Europeia.
O ambiente já estava meio tenso porque, dias antes, o governo da Ucrânia havia protestado contra o espetáculo. Visto que o autor da obra era russo, o governo de Kiev se arrepiou e disse que apresentar ópera russa era propaganda para a guerra de Putin. O argumento é fraco e distorcido, mas assim mesmo uns 30 ucranianos estavam postados diante do prédio no horário da ópera, prontos para se manifestar.
A direção do teatro explicou que uma apresentação de ópera não se monta da noite para o dia. A construção dos cenários, a preparação da orquestra, a contratação dos coristas e dos figurantes, o quebra-cabeça de conciliar a disponibilidade dos solistas – tudo isso tem de ser pensado com anos de antecedência. Quando a guerra começou, a montagem de Boris Godunov já estava contratada havia anos.
Um grupelho de “ativistas climáticos” resolveu bagunçar ainda mais o coreto. Meia dúzia de turbulentos defensores da ecologia, desses que invadem museus e grudam a mão em quadros preciosos, decidiu agir. O objetivo, segundo eles, é chamar a atenção das autoridades para as prioridades climáticas. Mas suas ações desmentem a alegada pureza de intenções.
Na inconsciência de seus jovens anos, os ativistas não se deram conta de que, ao despejar baldes de tinta na frente do prédio, estavam agredindo a natureza que juram defender. Não aprenderam que toda ação traz consequências. Aqui estão algumas delas.
Funcionários do teatro ou da prefeitura tiveram de passar horas esfregando as marcas a fim de deixar o local tinindo para o espetáculo da noite. Para limpar tinta, costuma-se usar aguarrás (essência de terebentina), produto químico tóxico e altamente inflamável.
Uma vez esfregada a fachada, a aguarrás entra pelo bueiro que só está ali para recolher água de chuva. Não sei como funcionam os esgotos de Milão, mas fato é que, mais cedo ou mais tarde, essa água poluída vai acabar despejada em algum lugar, provavelmente um curso d’água. Cursos d’água costumam ter peixes e outras criaturas vivas. Águas pluviais não trazem problemas para a vida animal, mas terebentina, sim.
O resumo da história é que os figurões vieram e a ópera pôde ser apresentada. Os protestos ucranianos não afetaram a noitada. A aguarrás não matou nenhum humano mas, quanto aos peixes, não se tem notícia.
____________________________________________________________
JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos, dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.
______________________________________________________________