Um novo modelo no campo. Por Aylê-Salassié Filgueiras Quintão
… se não tomarem rumos ideológicos dentro do novo Governo, o segmento agrícola e fundiário poderão mesmo gerar um modelo novo…
Dá pra chutar o pau da barraca ?!?…
Que a terra cumpra sua função social!… É o que diz a Carta aos Brasileiros, do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), na qual defende-se que a propriedade privada não pode comportar apenas propósitos econômicos. Tem compromissos sociais. Seu uso deve ser condicionado ao bem-estar coletivo, conforme dispõe a Constituição Federal, nos Art. 184 e 186. E tem mais, querem que o Poder Público promova a gradativa extinção das formas de ocupação e de exploração da terra que contrariem sua função social.
Contudo, para quem pensa em reforma agraria expropriatória, a mesma Constituição protege a propriedade produtiva, e proíbe qualquer intenção de as desapropriar. Como se não bastasse, os produtores rurais não tem também muita paciência com a invasão de terras.
Não sei se dentro do Grupo da Transição de Governo o assunto vai sendo digerido sem problemas. Aqui fora, a discussão entre o sistema agrícola produtivo e o MST, uma extensão ativa dos trabalhadores rurais sem terra no Brasil, tende a desenrolar-se num diálogo difícil, com muita gente dando palpite, e poucos se entendendo.
O MST está pregando um novo modelo de relações no campo, fundado na reindustrialização e na agricultura produtora de alimentos saudáveis, única forma, segundo os Sem Terra, de retomar um crescimento econômico com justiça social. Veem o sistema fundiário e a organização da produção agrícola brasileira operando, sem conexão adequada, em três frentes distintas.
A primeira, vista com desconfiança, é o chamado “latifúndio predador”, que enriquece os proprietários com a especulação imobiliária e com a apropriação dos recursos naturais, sem a devida compensação patrimonial. A segunda é o “agronegócio”, concentrado na produção de soja, milho, cana de açúcar, algodão e na pecuária bovina negociados no exterior como commodities (produtos comerciais). Esse grupo de produtor é acusado de desmatamento, do uso de agrotóxicos, do mono cultivo e, ainda, acumular riqueza, com as isenções de impostos para as exportações.
A terceira frente é a da “agricultura familiar”, a preferida pelos Sem Terra, porque – justificam – usa mão-de-obra domiciliar, protege à natureza e dedica-se a produzir alimentos para o mercado interno e para as próprias famílias. De fato, internamente, são as pequenas propriedades rurais as responsáveis pelos suprimentos de mais 60 por cento dos alimentos para o consumo da população. Os Sem Terra defendem ainda a introdução de máquinas agrícolas capazes de beneficiar essa produção, agregando valor, e gerando emprego e renda para fixar as famílias no campo.
Dito isso, observa-se, contudo, que não dá para passar uma borracha sobre a agricultura tradicional. Ela está produzindo 238 milhões de toneladas de grãos (gerando quase R$ 800 bilhões nas exportações), e prevê, para até 2030, um aumento da produção em mais 80 milhões de toneladas. Trata-se de um segmento fortemente organizado, criador de empregos, de riqueza, de alimentos, de fibras e de bioenergia para o Brasil e para outros países. O setor responde por 21% da soma de todas as riquezas produzidas no País, um quinto de todos os empregos e 43,2% das exportações brasileiras. Foi um dos poucos que apresentou crescimento expressivo nesses últimos quatro anos.
Internamente, teria contribuído para manter estável o preço da cesta básica de alimentos.
Temido pela competitividade, o Brasil está entre os cinco maiores produtores agrícolas do mundo, junto com a China, Estados Unidos, Índia e Rússia (Ucrânia). E todos estão investindo em novas tecnologias na agricultura, para garantir o aumento no volume e na diversificação da produção no campo. A produção agrícola brasileira, mesmo sob a forma de commodities, tem contribuído sistematicamente para impedir um crescimento maior da fome no planeta, que cresce em ritmo maior que o do sistema produtivo.
Após a Conferência do Clima (COP 27), no Egito e, agora, com um novo Governo no Brasil, promete-se, por aqui, entrar em campo com três novidades. A primeira é incremento da agricultura familiar e, dentro dela, a distribuição de terras dos latifúndios improdutivos, sobretudo nas proximidades das cidades, com o fim de multiplicar o número de famílias envolvidas na produção de alimentos, e possibilitar um programa de agroindústrias cooperativadas, em todos os municípios do País, para beneficiar alimentos e conter e evitar a emigração descontrolada para a cidade, gerando localmente emprego e renda no campo.
Em seguida, vem a economia verde (agroecologia), reivindicando a proibição do uso de agrotóxicos e o desmatamento zero. Defende um plano de reflorestamento, com o replantio de milhões de árvores nos biomas degradados. Reconhece-se que é condição necessária para combater as mudanças climáticas que afligem a população do planeta”. Propõe-se a melhorar a produtividade no campo e a introduzir no campo tecnologias capazes de gerar alimentos saudáveis, sem agredir a natureza.
Enfim, as questões na área da agricultura são complexas, e as abordagens ainda mais confusas. Mas, se não tomarem rumos ideológicos dentro do novo Governo, o segmento agrícola e fundiário poderão mesmo gerar um modelo novo. Os produtores reivindicam segurança jurídica e proteção física contra invasões de propriedade para dar continuidade à produção e à exportação; os trabalhadores sem-terra cobram o cumprimento da função social da terra. Um entendimento não está longe. É certo, contudo, que não dá para sair chutando irresponsavelmente o pau da barraca.
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Aylê-Salassié F. Quintão – Jornalista, professor, doutor em História Cultural. Vive em Brasília. Autor de “Pinguela: a maldição do Vice”. Brasília: Otimismo, 2018
E autor de Lanternas Flutuantes: