ladrões de galinha

Aqueles queridos ladrões. Por Antonio Contente

…um passado de ouro que já houve em nosso país, quando ladrões eram apenas os poéticos sujeitos que pulavam muros de quintais, arriscando as próprias vidas, para roubar as esposas dos galos…

ladrões de galinhas

Não são poucas as coisas, para o bem e para o mal, que nos fazem reféns do passado. De repente certos acontecimentos emergem, em nossas mentes, como sombras saídas das brumas do tempo. Algumas vezes para angustiar; outras, para deleite; e, terceiras, para dar lições. Durante muitos e muitos anos a figura do ladrão de galinhas repousou n’algum lugar de  minhas variadas memórias. Faz alguns anos escrevi para o jornal campineiro Correio Popular e para O Pasquim, que havia sido relançado (voltou a se finar) pelo meu amigo chargista, jornalista e pintor Zélio Alves Pinto, um texto. Nele, diante da quantidade insuperável dos meliantes de colarinho branco em ação neste país, eu apontava os afanadores de penosas dos quintais d’antanho como acabados símbolos de pureza.

Para ilustrar lembranças recorri a episódio ocorrido na época em que eu era foca de um jornal da Capital. Destacado para fazer cobertura de plantão noturno na delegacia que funcionava no Pátio do Colégio, onde São Paulo nasceu, fui testemunha de episódio singular. Despencara a madrugada de um junho frio, gelado, siberiano como era comum no comecinho dos anos 60. De repente chega viatura com álacre sirene ligada, trazendo no bojo a figura de um homem preso; magro, magérrimo, agasalhado apenas com leve camisa de flanela fina, vagabunda, ante a temperatura baixíssima, coisa de 01 ou 02 graus. Os repórteres se apressaram em verificar de quem se tratava e deram de cara com um total, absoluto, indesmentível ladrão de galinhas. Que havia sido surpreendido, horas antes, no quintal de um casarão no Bixiga portando, dentro de uma espécie de paneiro, três penosas. Que acabara de surrupiar do galinheiro de um italiano que o deteve, aos berros. Armado com ameaçadora garrucha chamou a Rádio Patrulha. Atualmente ainda existe Rádio Patrulha? Bom, isso não tem muita importância…

O importante é que o pobre homem, na delegacia, tremia, acuado, com lágrimas prestes a brotar em seus olhos. Um colega do Estadão se aproximou com pergunta francamente óbvia, mas que acabou sendo fundamental:

         — Por que você fez isso, amigo?

         — Ah, doutor – veio a resposta, em voz sumida – eu precisava das galinhas para fazer uma canja. Estou com filha doente em casa; tenho medo que, sem alimentação, ela morra…

Pronto, foi o suficiente. Logo outro repórter, do Diário de S. Paulo, arrancou de sob o paletó um dos dois suéteres que usava e fez o prisioneiro vestir. Eu mesmo, sem titubear, tirei as luvas que esquentavam minhas mãos para repassar ao detido. Também, surgido não sei de onde, um cachecol foi enrolado em seu magro, esquelético pescoço.

 O resto aconteceu muito rápido. Todos os jornalistas do plantão imploraram ao delegado que soltasse o homem. Diga-se que o bom policial nem discutiu e, pouco depois, cedeu uma viatura. Na qual fomos ao Mercadão, na Baixada do Glicério,  onde compramos meia dúzia de gordos frangos e capões para dar ao coitadinho. Levado depois à sua casa, de carro, por um dos plantonistas da Folha de S. Paulo. De fato, ele estava, mesmo, com a filhinha enferma. Na continuação o repórter Alderaban Cavalcanti, na Última Hora, que era uma espécie de reencarnação de São Francisco de Assis, providenciou tratamento médico para a guria. E arranjou emprego pro pai.

 O resultado de tal fato, que estava a dormir entre as brumas de minha memória, é que, agora, quero fazer uma sugestão a quem de direito, talvez o Congresso. Está claro que diante da absolutamente indimenssionável roubalheira que tomou conta do nosso país, especialmente neste século XXI, todos nós passamos a sentir funda nostalgia dos dourados, limpos tempos em que ladrão que ganhava as páginas dos jornais eram apenas os afanadores de poedeiras. Homens simples, generosos, puros, honrados, pais de família exemplares, abençoados, que se apossavam das cacarejantes aves alheias para, com elas, operar suculentas canjas para filhos doentes; ou esposas em resguardo pós-parto.

Nessas condições, para solidificar à posteridade este símbolo de pureza ante tanta bandalheira que continua a nos assolar, sugiro que seja instalado, no meio do campineiro largo do Rosário, um Monumento ao Ladrão de Galinhas Desconhecido. Algum escultor de boa cepa poderá eternizar, em mármore de Carrara, a figura do honestíssimo, exemplar meliante a portar, num cesto, três ou quatro gordas penosas. No solo, um lume perene como o existente em Paris junto ao túmulo do soldado sem nome. Campinas, assim, seria pioneira na singela homenagem. Antevejo, até, que vindo algum dia à nossa amada cidade o papa Francisco possa, como outras figuras importantes, depositar coroa de flores aos pés do monumento. Que, com o tempo, quando formos realmente um país sério, o que se espera ocorra algum dia, poderá ter replica, em tamanho maior, na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Marcando, “per omnia saecula, saeculorum”, um passado de ouro que já houve em nosso país, quando ladrões eram apenas os poéticos sujeitos que pulavam muros de quintais, arriscando as próprias vidas, para roubar as esposas dos galos. Como alternativa, pintinhos. Não tendo esses, ovos…

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTE

Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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