Aracruz, ES. O ódio sem limites. Por Alexandre H. Santos
O jovem que cometeu esse crime não nasceu assassino. Mas aprendeu a ser através dos exemplos de intolerância que espelhou e seguiu.
“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor da pele,
pela origem ou pela religião.
Para odiar as pessoas precisam aprender e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.”
[Nelson Mandela]
Um texto que li décadas atrás de autoria do professor Rubens Alves transformou o modo como passei a avaliar as relações humanas. O artigo Tênis ou Frescobol – que tipo de relacionamento é o seu? me ensinou uma metáfora que até hoje utilizo para visualizar os vínculos entre as pessoas. A ideia do mestre foi de uma simplicidade radical, quase pueril; por isso mesmo, genial. Qualquer que seja o tipo de troca que temos com o outro, nós jogamos tênis ou jogamos frescobol.
Esse dualismo, contudo, pode assumir aspectos mais complexos. Os autores Barry Nalebuff e Adam Branderburguer criaram o termo co-opetição, para nos ajudar a compreender e realizar negociações bem-sucedidas. Quer dizer, trocas ganha-ganha – aquelas cujo resultado agrada a todos os envolvidos. E embora os negociadores tenham interesses opostos e um ou outro tente obter maiores vantagens, a negociação é um jogo amistoso. O outro não é visto e nem tratado como adversário, e menos ainda como inimigo. Para que os intercâmbios sejam satisfatórios e duradouros – quer se trate de negociações comerciais, políticas ou familiares –, os afetados pelo acordo final precisam perceber e sentir aceitação, equilíbrio e justiça naquilo que foi combinado.
Agora vejamos esse conteúdo sob a ótica da política republicana. Um esquema didático criado por Peter Block nos ajuda a identificar os principais atores do xadrez político. Cada perfil exposto abaixo depende da força de dois vértices: confiança e concordância.
Se há alta confiança e alta concordância entre mim e o outro, verei o outro como meu aliado. Aquela pessoa com a qual sei que posso contar. Se necessário, até fecho os olhos e me deixo conduzir.
Se sinto alta confiança e baixa concordância, tendo a enxergar no outro um opositor. É o caso frequente dos familiares. Aquele parente que você sabe que nunca irá lhe enganar ou lhe prejudicar, alguém de sua total confiança. Mas, meu Deus do céu, como vocês pensam diferente!
Já o sujeito com quem concordo muito, mas confio pouco, chamo de correligionário. Presentes nas fileiras partidárias, os correligionários se reúnem e coincidem em torno de um programa comum, mas no fundo ninguém confia 100% em ninguém.
Por fim, se você não confia e nem concorda com o outro, tem diante de si um adversário. Com essa pessoa ocorrerão seus maiores embates. Vale você respirar fundo e redobrar a atenção.
Fica claro que a interação entre os agentes políticos em um Estado Democrático de Direito – acordado, construído e ratificado na vida cotidiana pela sociedade civil – segue esse gradiente de perfis. Quer entre nós joguemos tênis ou frescobol, permeia nossas diferenças o inegociável princípio da tolerância. Sem isso não há e não pode haver Res Publica. Se tenho divergências com o outro, devo ver o outro, no máximo, como adversário, jamais como inimigo. Pois cada cidadã e cidadão almeja “o melhor” para o país – ainda que as ideias que uns ou outros tenham sobre o conceito de melhoria, sejam diversas e até opostas. Conviver bem com aliados e correligionários, ser flexível com oponentes, e capaz de tolerar os adversários, é o grande desafio da convivência plural numa Democracia. Ora, essas condutas republicanas são impensáveis e impraticáveis para pessoas que tenham crenças rígidas e sectárias.
É impossível pensar o bolsonarismo sem a perversa influência de Olavo de Carvalho. De maneira que o bolsolavismo se tornou o que nasceu para ser: uma seita fundamentalista onde impera o pensamento único. Um espaço que não admite a mínima divergência e exige dos seus membros lobotomizados fidelidade canina. Sua primeira diretriz determina: quem não é igual a mim é contra mim. Os líderes pregam que os divergentes não são meros adversários; são inimigos! Esta forma binária, burra e distorcida de ver a política está presente nos discursos e nos atos de ódio. Daí que o que era para ser um animado jogo político republicano, ora tênis, ora frescobol, se transforma numa guerra de vida ou morte. As práticas fascistas não incentivam o convívio colaborativo e fraterno entre semelhantes e diferentes – justo o que mais visceralmente nos torna humanos. Após negar essa bênção, recusá-la, tomá-la como insulto, aos sectários resta fazer o que foram doutrinados para fazer: atacar, excluir, anular, mentir, bater, reprimir, matar. Pronto, o extremista está treinado para agir.
Agora já podemos pensar no massacre que ocorreu em Aracruz, Espírito Santo, na semana passada. Um adolescente de 16 anos, vestido como soldado, portando duas armas do pai – policial militar, com uma cruz suástica no casaco, invadiu duas escolas e atirou contra as vítimas. Até esse instante, morreram três professoras e uma aluna de 12 anos: 4 mulheres! Os demais feridos estão hospitalizados, alguns em estado crítico.
O jovem que cometeu esse crime não nasceu assassino. Mas aprendeu a ser através dos exemplos de intolerância que espelhou e seguiu. Segundo a polícia, foi o próprio pai do menor, admirador de Hitler, quem comprou o best-seller nazista Minha Luta e deu para o filho ler! Fico imaginando o superlativo sentimento de ódio capaz de mobilizar o adolescente e motivá-lo a perpetrar essa matança.
Agora falando como pagador de impostos, é assustador me dar conta de que, mesmo diante de uma tragédia dessa magnitude, o Presidente da República confirma sua incapacidade de expressar algum remoto vestígio de empatia. Meu Deus do céu, se até Richarlison, o craque dos 2 X 0 contra a Croácia, enviou mensagem de condolência para as famílias enlutadas… No momento em que familiares e amigos das vítimas de Aracruz estão vivendo uma tristeza sem fim, Jair Messias escolhe permanecer alheio e calado.
A responsabilidade pela extrema violência do ataque às duas escolas de Aracruz não deve recair apenas nas costas do jovem nazista. Por ação e por omissão essa tragédia tem vários e honrados coautores: em primeiro lugar estão os coautores ativos. São todas as pessoas empenhadas em transformar o jogo do tênis político numa guerra civil. Vomitam uma retórica do ódio, na qual o divergente é apontado como autêntico inimigo, “comunista”, “petista”, “socialista”, como alguém a ser fisicamente eliminado.
Em segundo lugar estão os coautores por omissão. Aqui estão os que permitiram a doença do ódio crescer e se expandir sem que fosse ampla e duramente combatida. Por hipocrisia, vantagens ou simples medo, uma significativa parcela de brasileiros e brasileiras com poder de influência, aceitou de forma passiva, com silenciosa docilidade e braços cruzados, a expansão do extremismo fascista. Desde essa perspectiva, Aracruz é somente parte da nefasta fatura que o ódio sem limites produziu. E não se engane, a covardia cobra um altíssimo preço; todos nós – como as famílias de Aracruz – teremos que pagá-lo!
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*Alexandre Henrique Santos – Atua há mais de 30 anos na área do desenvolvimento humano como consultor, terapeuta e coach. Mora em Madri e realiza atendimentos e workshops presenciais e à distância. É meditante, vegano, ecologista. Publicou O Poder de uma Boa Conversa e Planejamento Pessoal, ambos editados pela Vozes.
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