tipo inesquecivel

Meu tipo inesquecível. Por Antonio Contente

         Amava quando ele falava de luares, flores, frutos, estrelas, marés, peixes, mulheres e amores possíveis e impossíveis. Meu tipo total e completamente inesquecível.

meu tipo inesquecível Às vezes me passa pela cabeça que nem que eu vá até o fim do mundo, encontrarei novamente outra figura igual ao notável Amadeu. Ele me enrolou durante anos e anos com tanta competência que, a cada vez que a coisa acontecia, ao invés de me aborrecer acabava por me sentir ainda mais subjugado ao seu heterodoxo charme. Tudo alimentado pela macia fala paraibana, aliada a uma inigualável capacidade de prometer coisas que sabia ser impossível de cumprir.

Quem me lê deve estar a perguntar o que é que o cara fazia. Respondo: consertava geladeiras. Desde que a minha quebrou naqueles tempos em que eu tinha casa no litoral atlântico do Pará, acabei ficando escravo do incompetente técnico. Que, a cada temporada de férias, me tomava um bom punhado de cruzados, que era a grana da época. Isso porque todas as vezes que eu despencava na casinha, era fatal: a droga do refrigerador não  funcionava.

 Num certo julho de Verão escaldante cheguei ao tugúrio e tratei de ligar a máquina para, em tempo hábil, ter gelo. Só que não funcionou. Como eu havia deixado tudo em ordem, consertado por Amadeu antes de eu viajar para S. Paulo, me passou pela cabeça que poderia haver certa cumplicidade entre o mecânico e a geladeira. Corri à oficina para chamar o cara.

         — Chefe – ele ergueu os braços ao me ver – é a fábrica de gelo, não é?

Vinte minutos depois, observava o mecânico trabalhar. Ao mesmo tempo, falava sem parar. Discorreu sobre a situação do Brasil e do mundo, elogiou os efeitos benéficos de certas plantas medicinais, forneceu duas ou três receitas para o preparo de peixes e, ao fim, abriu sorriso imenso:

         — Se o conserto não ficar bom, hoje à noite mesmo lhe trago outra geladeira.

         — Nova? – Indago, até com certa ironia.

         — Mais nova do que cada orvalhada manhã que nasce diante dos olhos do amigo…

De outra vez, ao chegar à casinha num mês de maio, antes de ligar o refrigerador fiquei mirando-o longamente. É que, ao fechar o barraco, em janeiro, funcionava direitinho, após a manutenção feita pelo nosso personagem. Funcionará com a mesma eficiência agora?, me indago a alimentar suspense que só a psicanálise explicaria. Por fim, pego na tomada e ligo. Satisfeito, escuto que o motor pegara. Só que gelar, que seria bom, não gelou.

Lá fui, é claro, para a oficina do Amadeu. Onde o encontro a  discursar para uns seis ou sete ouvintes. Falava, com ânimo, sobre a necessidade urgente do presidente de então, José Sarney, renunciar. E sua explanação era tão clara e precisa, que eu mesmo fui convencido. Ao descer do caixote para papear comigo, Amadeu arrancou do próprio bolso um amassado papel com números sobre a economia e a inflação. Entendia mais sobre o espinhoso tema do que Adam Smith, John Maynard Keynes, John Stuart Mill ou Linda Yueh.

         — Estamos na beira do abismo. – Coloca a mão no meu ombro – Mas já sei o que o traz aqui.

         — Claro, é ela – dou um sorriso.

         — Fique tranquilo – retruca – hoje à noite você terá mais icebergs do que no Alaska ou na Patagônia.

Só que, na verdade, ele só apareceu no dia seguinte, e já foi entrando na casa a mostrar manchas de batom na camisa branca:

         — Sabe quem fez isso? A Clara, lá da Ponta da Agulha. Sou doidinho por ela.

Aceitei a desculpa, mas tratei de apontar para a geladeira. E ele:

         — Essa sua máquina é ótima, é maravilhosa. Só precisamos ajeitar alguns detalhes.

Sentei ao lado pronto para escutar o papo que logo jorraria, ao mesmo tempo em que ele trabalhava. Recebi então detalhada aula sobre as influências das fases da lua sobre várias coisas, a começar com as marés. Após apontou o que o luar fazia para facilitar ou dificultar a captura de certos peixes, lembrou a importância que também tinha no sazonar dos frutos e no nascimento de algumas flores, para culminar com um conselho que o fez parar com o que vinha fazendo. Murmurou, olhando nos meus óculos:

         — Nunca, jamais, em tempo algum leve sua namorada pra cama nos quartos minguantes. É brochada na certa… Já se for lua cheia, você fará a moça alcançar o paraíso como  nenhum outro homem o faria…

Mas surpresa, mesmo, tive no dia seguinte, quando ele bateu na casa antes da sete com uma caixa na mão. Coloca-a no chão dizendo que era um motor novo.

         — Mas como? – Me assusto – Deve custar uma boa grana.

         — De fato, custa, mas para você é de graça. Presente meu.

Quando acabou a instalação viu uns elepês sobre o móvel do som e pegou um. Pergunta se eu sabia como o pai escolhera seu nome. Diante do não, ele mostra:

         — Tirou deste compositor aqui, que ele adorava. Assim que saia um disco com sambas e chorinhos compostos por ele, papai comprava.

Olho para capa que se encontrava na mão de Amadeu e vejo o nome de Mozart, escrito por completo: Wolfgang Amadeus Mozart. Abraço o querido paraibano e preparo uma bebida para ele. Digo-lhe não acreditar na eficiência do motor novo que acabara de me dar. Retrucou que também não acreditava, mas que o importante era nossa amizade. Que perdurou, pois o mimo que me dera nunca serviu para nada. Comprei refrigerador novo, mas nunca deixei de chamar o incompetente mecânico para tomar uns goles comigo. Amava quando ele falava de luares, flores, frutos, estrelas, marés, peixes, mulheres e amores possíveis e impossíveis.

Meu tipo total e completamente inesquecível.

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTE

Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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