A Copa do Catar. Por José Horta Manzano
… Para acolher a Copa, o Catar construiu 6 estádios novos e renovou 2 antigos, situados a um pulinho de distância uns dos outros. Não existem operários cataris. A mão de obra é exclusivamente constituída de estrangeiros oriundos de países pobres: indianos, paquistaneses, filipinos…
A decisão de confiar ao Catar a realização da Copa do Mundo 2022 foi tomada exatamente 12 anos atrás. Naquela época, muita gente desconfiou que havia algo estranho nessa atribuição. O país anfitrião era pequeno demais, sem tradição futebolística, com estádios fora das normas, desértico na paisagem, infernal no clima. Não fazia sentido.
Ficou a impressão de que havia corrido muito dinheiro para compra de votos numa assembleia que descartou os EUA e escolheu o pequeno país. Apesar dos murmúrios, porém, ninguém se revoltou a ponto de sair em passeata pelas avenidas das grandes capitais mundiais. O tempo foi correndo e parecia que todos tinham se acostumado à ideia.
Só que mais de dez anos se passaram, o mundo mudou, certos fatos não são mais vistos pelo mesmo ângulo. Este ano, à medida que a data do início da Copa se aproximava, os protestos começaram a surgir e a se encorpar.
Para acolher a Copa, o Catar construiu 6 estádios novos e renovou 2 antigos, situados a um pulinho de distância uns dos outros. Não existem operários cataris. A mão de obra é exclusivamente constituída de estrangeiros oriundos de países pobres: indianos, paquistaneses, filipinos.
As condições de trabalho se aproximam da escravidão, com jornadas de 12 horas sob sol de 50°, alojamento em dormitórios sem conforto, passaporte retido, proibição de mudar de emprego, condições de segurança lastimáveis. Observadores internacionais calculam que, durante a construção dos estádios, os acidentes de trabalho tenham causado centenas, talvez milhares de mortes.
Alguns dos estádios novos são inteiramente fechados e contam com ar condicionado, ideia considerada aberrante pela consciência ecológica que cresceu nesta última década nos países mais avançados.
Em decorrência do verão escaldante, a Copa teve de ser adiada. Em vez de programar os jogos para o verão do Hemisfério Norte (junho/julho), como tinha sido feito desde as primeiras Copas, a Fifa atrasou o campeonato para novembro e dezembro. Isso acabou perturbando os campeonatos nacionais, que deveriam estar a todo vapor a estas alturas. Assim mesmo, os torcedores enfrentarão tardes de 30° nos estádios – daí a decisão de instalar ar condicionado.
De uns seis meses para cá, a opinião pública mundial finalmente acordou. É verdade que covid-19, guerra na Ucrânia e outros problemas graves tinham ocupado a cena e a Copa foi relegada a segundo plano. De uns seis meses para cá, a Copa entrou na pauta.
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Por um lado, estão as suspeitas de cooptação e corrupção para a atribuição da Copa ao Catar;
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Por outro, está a aberração de instalar ar condicionado no deserto, fato que, além de ser um desperdício, contribui para aumentar as emissões de gás de efeito estufa;
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Pra coroar, está o horror de um regime escravagista e medieval, em que os humildes são maltratados e relações homossexuais são punidas com 7 anos de cadeia.
Por essas razões, manifestações de repulsa têm pipocado por toda a Europa. Há quem garanta que não assistirá a nenhum jogo dessa Copa, afirmação difícil de ser fiscalizada. Há figurões, futebolistas e não-futebolistas, se manifestando e denunciando os podres da Copa 2022.
O boicote mais visível vai ficar por conta da anulação de numerosas “fan zones”, aqueles imensos telões montados em praça pública para mostrar os jogos a milhares de fãs acomodados em roda, como num cinema ao ar livre. Paris, Bruxelas, Berlim já anunciaram que não haverá fan zones este ano. Grandes cidades francesas e suíças apoiam o boicote no mesmo tom: nada de telões.
Acho apreciável que o distinto público manifeste sua reprovação, só que ela chega demasiado tarde. A hora de reclamar era em 2010, assim que o Catar foi escolhido, antes da construção dos estádios e da morte dos operários. Perdeu-se o momentum.
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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos, dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.
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Escuto, ao longe, quase inaudível vindo do Catar, um “perdeu, Mané, não amola”.