O enigma de Lula. Por Aylê-Salassié Filgueiras Quintão
O ENIGMA DE LULA: SER ESTADISTA OU MÁRTIR
“Não posso querer ser presidente do Brasil para resolver problemas do sistema financeiro, dos empresários …”, disse Lula, ainda em campanha para a Presidência da República, em entrevista a um grupo de jornalistas. Em seguida, projetou o fim do capitalismo, referindo-se aos Estados Unidos e seus aliados, enfatizando que “o Brasil é o país mais importante da América Latina, o maior em população, o maior economicamente, e que tem interesse em crescer junto com todos os demais da região . Arrematou advertindo: “o Brasil quer ser um grande protagonista”.
Nas condições atuais, de fato, “sem orientação para absolutamente nada”, nunca será. Provavelmente, Lula ou seu orientadores recorreram ao economista russo da primeira metade do século passado, M. Draguilev, autor de um dos livros mais vendidos e, ao mesmo tempo, banidos das bibliotecas por aqui, sobre “A crise geral do capitalismo“, cujo fim chegou a ser anunciado na campanha também por Lula. As previsões de Draguilev arrastaram-se pelo século XX, deglutidas pela globalização; as de Lula, que embarcou na ideia da” última etapa do capitalismo”, não permitem prever o momento que esse feitiço ganhará uma face.
Embora pense de si para si, Lula é, entretanto, daqueles que, como Darcy Ribeiro, entende que o caminho do Brasil não será o soviético, nem o japonês, nem o canadense: “ninguém revive a história alheia”. Mas, vai dar trabalho uma nova configuração de país e se tentar. Não será bem pela ressureição do ódio destilado na campanha. Aos perdedores ostracismo ou cooptação, mesmo que eles exerçam o direito de espernear.
Os sinais são, entretanto, de que Lula, como Presidente, pretende tomar direção própria, como líder regional, um estadista , preocupar-se mais com a reinserção do Brasil, e dele próprio, no cenário mundial. Ele pretendeu ir para a ONU. A política interna ficaria com um primeiro ministro que, supostamente, seria o papel de Alckimin, sob a vigilância do PT (e aliados). Alckmin convenceu-se de que, sozinho ou pela via do PSDB, jamais chegaria a ser Presidente da República do Brasil. O PSDB desmancha-se e o PMDB foi engolido.
“Temos que construir outro mundo. Rediscutir uma nova governança mundial. Precisamos de uma ONU rejuvenescida, renovada, mais representativa da geopolítica atual e com determinados poderes … as decisões precisam ser mais coletivas e não unilaterais”, disse .
Algo inusitado vem por aí. Com tiradas filosóficas inspiradas nos ensinamentos de Draguilev, Lula quer, primeiro, limpar a sua “barra” lá fora. Segundo, passar na história como líder regional, um estadista, não propriamente como um revolucionário. Ele não é a favor da invasão da Ucrânia, embora não despreze uma aliança com Putin. Na América Latina, esse espaço está aberto, com a ausência de Fidel Castro, Chavez, e Kirchner. Lideranças remanescentes, como Maduro, da Venezuela, Cristina, da Argentina, e Ortega, da Nicarágua, não são páreos. Estão no fundo do poço, com a credibilidade menor ainda. São importantes como aliados de conveniência.
Seguidores mais fanáticos chegaram a propor seu nome para o “Prêmio Nobel”, a partir da afirmação dele de que sabia como ” acabar com a fome no mundo”. Além disso, o Nobel já havia sido atribuído a tipos como o presidente da Colômbia, Juan Maria Santos, por apaziguar as FARC e o narcotráfico, na Colômbia; ao líder guerrilheiro palestino Yasser Arafat (1994), responsável pelo massacre dos Jogos Olímpicos de Munique; aos belicosos ministros israelense Yitzhak Rabin e Shimon Peres, pelos acordos de paz no Oriente. Acrescente-se o fato de o Brasil nunca ter sido agraciado. A guerra da Ucrânia, grande produtor de alimentos, vai oferecer elementos para isso. A pobreza africana também, os latifúndios improdutivos no Brasil serão outros bons instrumentos.
Por outro lado, o PT precisa de um mártir para alcançar a hegemonia. Celso Daniel, líder inconteste em Santo André, centro de uma região que ajudou a criar o PT, não teve potencial para tanto. A soma de um Lula estadista, com a de um líder de um dos maiores partidos políticos do Ocidente, não é algo que deva ser ignorado. Não se isenta a fértil imaginação de Lula da ideia de um mártir para o PT, como PTB, que teve Getúlio- “Deixo a vida para entrar na História”, o PSD, com Kubitschek. Não é algo inusitado dentro dos partidos políticos . Afinal, ele tem ou não tem câncer ? Chavez tinha.
Todos os grandes partidos que perpetuaram-se no Poder usaram o carisma de alguém estigmatizado como mártir. O PCR, da Rússia, teve Lênin; o PCCH, da China, teve Mao; PCCb, de Cuba, teve Fidel; o PCC chileno teve Allende; a Argentina teve Peron; os EUA tentaram com os Kennedy; os japoneses com a família Real. Nada impede que um raciocínio cabuloso desses não possa desvendar a face oculta de alguém com visibilidade ampla e já em idade quase provecta . Para chegar ao Nobel tem, entretanto, pela frente, nada menos que o papa Francisco, um reformador da religião católica, e Greta Thunberg , a jovem sueca ativista ambiental, pessoas consideradas imaculadas.
Em questões de meio ambiente e tecnológicas, Lula tegiversa, embora goste da ideia do mercado de carbono para proteger a Amazônia, com recursos de empresas poluidoras no mundo. Mas, no caso da inovação tecnológica, como um ex pau-de-arara cheio de sonhos, no lugar da inteligência artificial, ele prefere a mão de obra e a cabeça do trabalhador comum, a quem consegue arregimentar fácil com a idéia fixa da tal “carteira assinada”. Convenhamos, aos 77 anos, Lula não está mais em idade de sair por aí discutindo políticas públicas com prefeitos e vereadores, suando em bicas no sol quente do Nordeste. Isso foi na guerra das eleições… Immanuel Kant, na sua “Paz Perpétua”, adverte sobre a importância de se “Pensar o próprio tempo”, como uma opção para a “razão prática”.
Esta semana (07-13.11.2022), o mundo chega aos 8 bilhões de cidadãos. Nesse mesmo momento está sendo aberto, no Egito, num local chamado Sharm El Sheikh, na ponta da Península do Sinai, potencializada pela belicosidade, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2022 (COP27) . O número 27 refere-se a quantidade de encontros à busca de soluções e da indicação de caminhos para os países adequarem-se a essas transformações radicais no clima da Terra. Discute-se não apenas as Mudanças Climáticas, mas também a Transição Energética, Cidades Sustentáveis, Mercado Livre de Energia, até os Transgênicos. Um grupo de países em desenvolvimento quer indenização pelas “perdas e danos”, advindas das novas orientações globais.
Tudo isso significa que não estamos sós no Planeta, e nem que conseguiremos sobreviver às custas de nossos mitos. O bom senso no uso dos recursos naturais, atmosféricos, políticos ou espirituais é que poderão salvar a vida no Planeta. Os vivos são responsáveis pelos seus próprios destinos. É isso que a COP está tentando dizer . Daí é que, provavelmente, sairão os novos Prêmios Nobel.
Lula sabe disso também, e está indo para lá, segundo Bolsonaro, como “usurpador”. Corre o risco de não resistir à tentação de insistir na cobrança das “perdas e danos”, se tiver acesso à fala, e se manifestar como um corporativista ou um nacionalista. Essas coisas não tem futuro na COP.
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Aylê-Salassié F. Quintão – Jornalista, professor, doutor em História Cultural. Vive em Brasília. Autor de “Pinguela: a maldição do Vice”. Brasília: Otimismo, 2018
E autor de Lanternas Flutuantes: