O que os sebos guardam. Por Antonio Contente
… Precisava de um profissional em sebos para me ajudar. E o que, de resto, me animou a procurar a pessoa certa, foi lembrar que uma vez, no século passado, eu caminhava do Hyde Park no rumo de Picadilly Circus, em Londres, todo encapotado num inverno muito frio, muito úmido…
Francamente não sei de outra pessoa, aqui em Campinas, que tenha conhecido tanto sobre sebos como o já falecido médico João Plutarco Rodrigues Lima. Foi figura importante na urbe, pois, entre outros cargos relevantes, ocupou as Secretarias de Cultura e da Saúde, em dois diferentes mandatos do também já falecido prefeito Chico Amaral. Além de ter sido membro da Academia Campinense de Letras. Pois bem, conto isso porque precisei, certa vez, da ajuda de Plutarco na tentativa que vinha fazendo, desde começos do atual século, de encontrar algumas antigas edições de livros do escritor colombiano Vargas-Vila (José Maria Vargas-Vila, 1860-1933). Caça que efetuei em várias cidades, só que de forma muito vaga, quase diria amadora. Precisava de um profissional em sebos para me ajudar. E o que, de resto, me animou a procurar a pessoa certa, foi lembrar que uma vez, no século passado, eu caminhava do Hyde Park no rumo de Picadilly Circus, em Londres, todo encapotado num inverno muito frio, muito úmido. Já havia ultrapassado a famosa casa Fortnum & Mason, quando, de repente, vi sair de portinhola numa ruazinha que levava ao meu destino, a figura de um senhor carregado de livros. Logo percebi duas coisas: os volumes não eram novos, antes pelo contrário; em seguida, conseguindo adivinhar as feições meio cobertas pelo cachecol e a gola do grosso sobretudo, vi que tinha diante de mim o bom semblante de João Plutarco, que eu nem sabia estar a fazer um curso na Inglaterra. Perguntei sobre a enorme carga que quase o fazia cambalear. Respondeu que saia de um sebo que ficava num subterrâneo que só os londrinos mais safos manjavam. E ele tinha autoridade para falar, pois conhecia, como as palmas de suas próprias mãos, inúmeras livrarias da Charing Cross Road, onde estão as grandes Passárgadas britânicas dos livros; e nas quais se abasteciam, inclusive, as bibliotecas de Sua Majestade, a recentemente falecida Rainha. Plutarco havia conseguido no porão de onde emergia, entre outras coisas, uma edição rara de “Judas, o Obscuro”, de Thomas Hardy. Além de um “Sparkenbroke” autografado por Charles Langbridge Morgan, o autor.
Bom, agora, certamente, é provável que algumas pessoas estejam a perguntar não só quem foi Vargas-Vila como para o que me poderia servir alguma brochura por ele assinada. Assim é que informo: o autor em questão, morto na década de 30, foi, a seu tempo, tão conhecido quanto o conterrâneo dele Gabriel Garcia Marquez a partir dos anos 70. E com certeza acumulou maior número de seguidores do que o autor de “Cem Anos de Solidão”. Isso pela simples e boa razão de ter sido polemista de hipérboles altamente, se assim posso dizer, condoreiras; e que tinha, no profundo ateísmo e na densa iconoclastia, as bases do que impressionava os que o liam, sobretudo os jovens. Quando o folheei, ainda quase adolescente no começo dos anos 50, gamei. Afinal, estudante em colégio de padres em Belém do Pará achei fantástico Vila garantir, num dos seus pensamentos: “Nada nos faz desconfiar mais da existência de Deus do que observar certas pessoas que acreditam Nele”. Ou ainda: “A alma da mulher está no beijo”. Bem como: “Somente no amor o homem está de joelhos; porque o amor é a única escravidão que não desonra”. Eu estava querendo rever este e outros pensamentos do escritor.
Assim foi que numa quente manhã, já neste século, saí com Plutarco em busca de sebos campineiros onde pudessemos encontrar algum Vargas-Vila. E a certeza que eu guardava de que não poderia ter guia melhor, é que de fato acabamos achando um volume com vagares do autor em questão. O que, de resto, me serviu para rever conceitos muito interessantes do irreverente homem de letras. Que logo de cara voltou a me ensinar: “Um livro te faz sofrer? Leia-o. Este livro te salvará”.
Efetivamente como venho curtindo, desde então, a obra tão duramente procurada, não vou agora, aqui, tascar no computador muitas das frases que me têm remetido a algumas viagens. Como aquela em que o colombiano diz: “Duvide. Nenhuma fé, até hoje, foi tolerante. A dúvida é a tolerância. A fé levantou fogueiras, a dúvida não as levantará jamais. Toda fé é uma tirania e todo crente é um escravo. Não acredite”.
Porém o mais curioso que encontrei na releitura foi uma reflexão de Vila que considero de atualidade acachapante. Ela se aplica, de forma perfeita, quase diria didática, a alguns mandatários desta nossa combalida República, ocupantes de cargos altíssimos, até aquele do topo. Não cito nomes porque minha praia não é a política. Leiam o que o colombiano escreveu, e, depois, quem quiser que ponha o carimbo na testa dos homens públicos mais prováveis como bem adaptados à rascante, porém verdadeira, sacada. Disse o escritor, morto, conforme já pontuei, nos anos 30: “O único método reflexivo de triunfar é a mentira; a verdade é espontânea, por isso leva sempre à derrota; ninguém se salvou por dizer uma verdade; todos os vencedores o foram pelo poder de uma ou de muitas mentiras”. É isso. Tivemos Segundo Turno de eleição faz pouco tempo, e vale terminar este texto com mais um bom suspiro do colombiano: “Aquele que põe a fé nos outros perde a única fé que o salva: a fé em si mesmo”. Bom dia.
_________________________________________________________________
ANTONIO CONTENTE –
Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
___________________________________________________________________