SONHOS

AVENIDA PAULISTA, 29 DE OUTUBRO DE 2022

Sonhos, quatro linhas e transição. Por Marli Gonçalves

Acordei esgotada de passar a noite inteira sonhando que estava arrumando malas e sei lá para onde é que era para ir. Vocês já tiveram sonhos desses, de noite inteira, de sonhar contínuo? Acordar, voltar a dormir e continuar com o mesmo sonho, quase um delírio?

SONHOS
AVENIDA PAULISTA, 29 DE OUTUBRO DE 2022

Pois foi isso que me deixou encucada. Primeiro porque é bem difícil eu lembrar com o que sonhei; segundo, porque inacreditavelmente lembro de ter praticamente arrumado e repassado o meu armário inteiro – e isso é muito. Ou seja, tudo o que tenho passou na minha mente, guardados de décadas, outras para lembrar dias e emoções – sim, a roupa que estava em um dia ou outro importante, amoroso, quase um museu particular. Coisas para doar, cores, casacos, calcinhas rotas até. Eu ia separando e arrumando tudo num movimento sem fim. Não foi por menos que acordei cansada.

Aí me toquei: ressaca eleitoral, só pode ser. Fiquei muito traumatizada com uma pequena saída que dei dia 2 de novembro, no feriado, dois depois do término das eleições. Andei dois quarteirões até o supermercado e vi um monte de gente muito esquisita lá dentro e perambulando pela rua iguais aos viciados da Cracolândia. Zumbis. Não estavam enrolados em cobertas de lã, mas com a bandeira nacional, a coitada vilipendiada. Traziam pela mãos criancinhas, que depois vi também serem usadas como escudos nos bloqueios das estradas.

Já não estava com bom humor, admito, depois de ter passado a noite anterior inteira tentando dormir ouvindo estouros de rojões, muitos, centenas, um atrás do outro, som que vinha ali dos arredores do Parque Ibirapuera, de onde moro há uns três quilômetros de distância. A noite inteira. Se foi inferno para mim, imagino o que assustou a fauna do parque.  Pensei que tipo de comemoração seria aquela, até pela manhã saber que havia uma reunião desses zumbis pedindo intervenção militar, negando o resultado eleitoral, marchando e entoando palavras estranhas diante do quartel – o mesmo onde dezenas de pessoas foram presas e torturadas e mortas durante a ditadura militar. As bombas vinham de lá. Creio que eles tinham comprado para comemorar a eleição do coisinho e como ele dançou foram usar para gastar e perturbar. Mas devia ser um caminhão, um caminhão de pólvora. Quanta comida daria para ser comprada. Mas eles quiseram fazer barulho, perturbar, sentirem-se fazendo guerra.

Fiquei mal mesmo, de verdade. Doente, de cama. Depois acompanhando os movimentos pela tevê, os bloqueios e a violência, só piorei. E a pergunta que faço há meses continua. De onde saiu essa gente? Vocês devem ter visto nas redes os compilados e gravações desses movimentos em todo o país juntando grupinhos de alucinados quase se auto chicoteando, se imolando, alguns de joelhos rezando e gritando, outros marchando para lá e para cá irradiando ódio. Todos de verde e amarelo batendo no peito como se fossem só eles os patriotas. Um movimento claramente incentivado e organizado dias antes das eleições.

Porque natural, ah, natural não era! Natural mesmo foi o mar de gente tomando a Avenida Paulista cantando e dançando feliz durante toda a noite depois do resultado oficial, sofrido, mas vitorioso para quem não aguentava mais esses quatro anos de ataques e retrocessos.  Também moro perto, há um quilômetro, do MASP, na Avenida Paulista e daqui de casa ouvi a repercussão da festa. Depois, na madruga, dava pra escutar até o show da Daniela Mercury, de quem não gosto nada, mas achei até legal ficar ouvindo daqui da janela. Combinou com a festa toda. Natural também já tinha sido no sábado, e este movimento eu presenciei, dia anterior ao segundo turno, a mesma Paulista ocupada por milhares e milhares de pessoas de todos os tipos acompanhando o último evento da campanha de Lula e da Frente Democrática. Todos sorriam, se cumprimentavam, cantavam, num clima realmente de confraternização. Uma diferença enorme.

Começamos então a ouvir falar da transição de governo e agora entendi meu sonho desta noite. Simbolicamente estava arrumando minhas malas para esse novo tempo. Bem sei, nem vem! Não é que muita coisa vá mudar mesmo, estou acostumada com a política, e já dei muita risada com o Centrão imediatamente abandonando a barca e tentando subir nesse outro governo.

Mas outras cores – todas, na verdade, o arco-íris – chegam e podem ser usadas. Sem medo de ser feliz, sem o ódio e a ignorância que se incutiu nas mentes de forma tão deplorável e ignorante como o fez o tal bolsonarismo.

Ufa! No meu sonho, então, me preparava para outra viagem: a de novamente continuar a ser oposição, como já disse, a tudo o que for ruim, esse o papel da imprensa. Conheço bem os perigos dos tais ídolos de barro.

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marli - apostaMARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto.  (Na Editora e na Amazon). marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br

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2 thoughts on “Sonhos, quatro linhas e transição. Por Marli Gonçalves

  1. Prezada Marli. Tenho visto pela internet cenas inacreditáveis, pelo surrealismo que ultrapassaria as imaginações de Salvador Dalí, Max Ernst e René Magritte juntas. Parece que tomei um ácido, mas não… é tudo verdade ! Aconteceu no país em que nasci, embora naquela época fosse certamente outro país. Agora, no Brasil inteiro, estradas bloqueadas por caminhoneiros dementados e seus familiares celerados, vestidos de amarelo, enrolados de bandeiras nacionais, devidamente cercados de crianças por todos os lados – seu círculo de proteção – encenam um teatro de absurdos e violências sob a complacência de aparelhos policiais tomados de fascistoides. Alguns agridem crianças, adolescentes, num ônibus escolar, pois um dos guris gritou « Lula lá » ou coisa que o valha… Sim, esses caminhoneiros amarelos são muito machos ! Um outro, bêbado, passa diante de uma festa em que se comemora a eleição de Lula, e mata duas pessoas à bala (uma delas, menina de 12 anos). É um CAC entristecido que, depois, pede desculpas… Um desses caras se gruda ao para-brisa de um caminhão que não parou no bloqueio, e viaja ali, estrada adentro, por quilômetros. Há vídeos de todos os tipos mostrando essa figura. Impossível não rir – rir daquele de um riso nervoso, tenso, que antevê o desastre (não o desastre na estrada, propriamente dito, mas o outro, de um país em que o fanatismo político proporciona cenas assim). Outros alienados marcham diante de um quartel do exército como se de « cabeça de papel » fossem, tal como recita a brincadeira de criança, e se esgoelam de alegria quando lhes é dito que seu capitão mor vai se pronunciar em rede nacional em poucos minutos – é a vigília pelo golpe, enfim, recompensada ! Multidões ouvem um idiota qualquer – poderia mesmo ser qualquer um deles  – urrando que o exército está prestes a prender Alexandre de Moraes, ou declarar a eleição inválida, ou « acabar com tudo isso que tá aí »… e acreditam. Sim, eles acreditam mesmo, vão à catarse coletiva em nome disso ! Gente idiotizada chora a céu aberto porque seu mito sucumbiu a um certo comunismo internacional, que, horror dos horrores, já tomou por inteiro o Brasil…

    Esses caras não chegam a ser metade do país, como se dizem, mas são muita gente. O governo que se instalará a partir de janeiro precisará entender essa gente toda, entender sua tristeza e seu revanchismo fanáticos ; sobretudo, compreender seu poder de destruição e, na medida do possível e do aceitável, oferecer-lhe algo que a faça novamente sentir-se parte do país que realmente existe. Gente que acredita que Lula seja satanista – ou comunista… – é capaz de qualquer coisa. É com isso que o governo entrante terá de lidar. Estão organizados, estão conectados full time a si mesmos, têm financiamento garantido e líder definido – que, graças à lendária vocação nacional para a tolerância com tudo que é intolerável, restará vivo no mercado do terrorismo político por ainda muito tempo. O « mito », penso eu, não será condenado por nenhum dos crimes que cometeu. Nem sei se será julgado (Sergio Moro , afinal, só existe um, e é bolsonarista…).

    É isso, Marli. Espero que você, que sabe que ídolos costumam ser feitos de barro (e o barro brasileiro, como sabemos, não é lá grande coisa), esteja atenta. Não se deixe encantar pela ideia boboca de um novo Brasil que virá no ano que vem, mas também não se deixe desencantar de todo. Algum « encantamento » (ou, mais precisamente, algum idealismo) é necessário quando se quer reconstruir um país quase a partir do zero. De meu ponto de vista, se o próximo governo conseguir fortalecer as instituições e os aparelhos democráticos, e revigorar o apego que a população brasileira já teve ao conceito de democracia, terá feito sua parte. Para isso, é claro, terá de cumprir promessas de campanha, mostrar interesse pelo bem comum e, factualmente, concretamente, operar para tal. Isso merece de vigilância. E, se tem algo sobre o que não tenho dúvidas, é exatamente isso : que Lula esteja ciente, vigilância é o que não vai faltar. Espero apenas que seja honesta (esperança que não parte de um medinho qualquer, tendo em vista que os fenômenos coletivos de bolsonarismo criminoso, bem como as trapassas que inventam, nem de longe estão mortos).

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