lIBERDADE DE eXPRESSÃO - Assembleia Nacional francesa

Assembleia Nacional francesa

Liberdade de expressão: até onde? Por José Horta Manzano

… Seja como for, singular ou plural, não é frase que se pronuncie na Assembleia Nacional. O comitê da Câmara não tem poder para cassar o mandato do deputado, mas pode condená-lo a uma suspensão temporária com perda de salário.

Assembleia Nacional francesa

Dois dias atrás registrou-se um incidente grave na Assembleia Nacional da França, que corresponde a nossa Câmara Federal. Ao microfone, um deputado pedia esclarecimentos ao governo sobre um navio pertencente a uma ong, que vagava pelo Mediterrâneo em busca de um porto europeu que acolhesse os migrantes que se encontravam a bordo.

De repente, ouve-se o grito de um deputado do outro lado do anfiteatro. Muito erodida foneticamente, a língua francesa propicia o aparecimento de homófonos, palavras que soam igual mas têm significados diferentes. A frase que se ouviu foi:

Qu’ils retournent en Afrique!

= Que eles voltem para a África!

Acontece que Monsieur Bilongo, o deputado que denunciava o descaso para com o navio, é preto de cor. Francês, nascido na França, legitimamente eleito pelo povo, mas… preto. Tendo em mente esse importante detalhe, boa parte dos parlamentares interpretou a frase como:

Qu’il retourne en Afrique!

= Que ele volte para a África!

As duas frases se pronunciam exatamente da mesma maneira. Só o contexto faz a diferença. Dado que a frase era solta, sem contexto, a dúvida ficou. Nesta segunda opção, o contestador estaria se dirigindo pessoalmente ao discursante, criando assim um contexto racista.

O escândalo se instalou entre os parlamentares. A revolta foi grande, todos se levantaram e falavam alto ao mesmo tempo. A presidente da câmara foi obrigada a encerrar a sessão. O caso ficou de ser levado ao comitê disciplinar, que decidirá o tipo de sanção a adotar.

Os apoiadores do partido do deputado ofensor (de extrema-direita) são os únicos que não viram nada de mais no comportamento dele. Os outros – de esquerda, centro e direita – se dividem entre os que acreditam que a frase foi dita no plural e os que juram que ela foi pronunciada no singular, numa ofensa direta ao discursante negro.

Seja como for, singular ou plural, não é frase que se pronuncie na Assembleia Nacional. O comitê da Câmara não tem poder para cassar o mandato do deputado, mas pode condená-lo a uma suspensão temporária com perda de salário.

Esse acontecimento deixa no ar uma dúvida interessante. Em 2023, diversos estreantes se instalarão Congresso Nacional, em Brasília. Boa parte deles professa ideologia sabidamente de extrema-direita, com valores de exclusão de diferentes grupos, seja por razões étnicas, sexuais, religiosas, territoriais & afins.

No Brasil, não temos problemas imigratórios que possam gerar xenofobia. Mais dia, menos dia, um deles vai derrapar e ofender pesadamente alguma minoria, seguindo a cartilha do capitão. Como vão então reagir seus pares? Vão denunciar e adotar uma sanção? Ou simplesmente vão deixar pra lá, incitando outros parlamentares a se pronunciarem com virulência cada vez maior?

Observação
Escutei meia dúzia de vezes o vídeo do episódio. Minha conclusão é ainda pior. Não distingo o “que” inicial. O que ouço é:

“Retourne en Afrique!”

É frase no imperativo, sem homofonia possível. Se assim for, significa:

Volta pr’a África!

Só faltou acrescentar “seu Vagabundo”.

Naturalmente meus velhos ouvidos podem me enganar.

Adendo

A Comissão de Ética da Assembleia Nacional Francesa infligiu ao autor da interpelação racista a pena mais rigorosa de seu arsenal: suspensão de presença durante as próximas 15 sessões. Além disso, o salário do deputado será cortado pela metade durante dois meses. Pra coroar, a penalidade será ficará registrada para sempre nos anais da República.

Nos últimos 65 anos, é apenas a segunda vez que um parlamentar recebe penalidade tão pesada.

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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos,  dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.

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3 thoughts on “Liberdade de expressão: até onde? Por José Horta Manzano

  1. Uma pergunta que sempre me assoma e gostaria que o articulista respondesse se puder: por que toda vez que se fala em ‘direita’ coloca-se o “extrema”? Tento entender a adjetivação.
    Ou melhor, não entendo por que tal adjetivação sempre se refira a ‘direita’ e nunca a ‘esquerda’.
    Serão então, fatal e inexoravelmente, todos os republicanos e ‘de direita’ extremistas? Estaria no seu DNA essa terrível maldição?
    É de se pressupor que, então, em contrapartida, na nossa esquerda não haja extremistas. Ela abriga só os ponderados, justos e nada viscerais seres humanos do planeta. Gente objetiva e de mãos dadas com a verdade, doa a quem doer.
    Seria isso?
    O incidente francês relatado é, no mínimo, triste e lamentável e só reforça a onda de extremos que assola todo o planeta, triste reprise do início do século XX que culminou na Segunda Guerra.
    Tal incidente francês me recordou entrevista de dona Marisa Letícia a um certo canal de tv (não me lembro qual), à época da eleição de 1989 aqui no Brasil, quando a disputa era travada entre Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio da Silva (votei no segundo não por convicção, mas porque via no seu oponente um futuro de horror, e não estava enganada).
    Dizia ela que seu marido vociferava, xingava todos os palavrões conhecidos (e ele sabe muitos) cada vez que aparecia na tv alguém com pele escura. O termo usado foi preto mesmo.
    Essa passagem televisiva não me foi dita por ninguém. Não foi o primo da irmã da cunhada da minha vizinha do segundo andar quem viu. EU assisti e fiquei boquiaberta porque para mim, sem qualquer dúvida, Lula tem ascendência africana – e isso foi o que mais me chocou!
    Gosto sempre de anexar link comprovando o que digo, porém este sumiu faz muito tempo da internet – não foi o único que, de alguma forma, depunha e depõe contra o atual vencedor que misteriosamente foi eliminado: mistérios da internet. Infelizmente ficarei lhe devendo.
    O tempo passa. E o comportamento de ontem vai se depurando e adquirindo a cor do momento, principalmente para quem está na estrada há tanto tempo: hoje o discurso do vencedor é de acolhimento a todos, e não deveria ser mesmo diferente.
    Mas o seu vociferar contra pretos na tv ainda ecoa na minha memória.

    1. Antes de mais nada, agradeço à distinta leitora por suas visitas constantes, que muito me honram. Agradeço ainda mais por me atribuir qualidades de analista político que não tenho certeza de possuir.

      Assim mesmo, vou-lhe contar como enxergo o panorama esquerda x direita no Brasil. É apenas minha visão pessoal, sem pretensão de ser verdade bíblica.

      Os diversos componentes do tabuleiro político são identificados na medida que se manifestam. Quanto mais barulho fizer um agrupamento deste ou daquele matiz, mais sua presença será notada.

      Voltemos agora algumas décadas no tempo. Até o fim do período militar, ninguém teria a ousadia de se declarar “de esquerda”. Seria uma confissão passível de cadeia ou até pior. Era um palavrão a ocultar de qualquer maneira. Naqueles tempos, um observador estrangeiro chegaria à conclusão de que, no Brasil, não havia ninguém de esquerda. Éramos todos direitistas, políticos e população.

      Por que acontecia isso? Porque a esquerda estava amordaçada, calada, sem som. A impressão que ficava era de que não existisse.

      O tempo passou. Restaurada a democracia, os ventos mudaram de direção. A percepção deu uma guinada de 180 graus. Como repúdio à ditadura, a etiqueta “direitista” é que passou a ser rejeitada. Isso durou décadas. Até 4 ou 5 anos atrás, ninguém ousava declarar-se “de direita”. Todos eram de centro, de centro-esquerda ou de esquerda pura e dura. Isso incluía o conjunto dos partidos, do PFL ao Partidão.

      A chegada de Bolsonaro deu uma sacudida no panorama. Desinibido, ele se qualificou “de direita”. Num país em que a simples ideia de ser direitista tinha sido estigmatizada por tantos anos, muita gente aceitou a etiqueta e engoliu a denominação sem mastigar. E saíram todos por aí, faceiros, a apregoar: “Sou de direita!”.

      Dado que partidos francamente direitistas, como o PFL (depois DEM, depois União Brasil), herdeiro da velha Arena, nunca tinham ousado exibir a etiqueta correta, o eleitorado acabou entendendo que Bolsonaro era o único a representar os valores de direita, enquanto todos os demais eram esquerdistas, perigosos comunistas prontos a instalar no país a ditadura do proletariado.

      Pra encurtar a história, o que se constata hoje é que, apesar de cultivar valores extremos e comparáveis aos do nazi-fascismo, Bolsonaro tem sido visto como expoente político “de direita”.

      Meus longos anos já me permitiram entender a diferença entre direita e extrema-direita e, na outra ponta, entre esquerda e extrema-esquerda. No Brasil, como por toda parte, é certeza que há muita gente próxima do pensamento de cada graduação do espectro. No intervalo que vai da extrema-esquerda à extrema-direita, cabe toda a população pensante.

      O nó é que a parcela que adere totalmente à doutrina de Bolsonaro (extrema-direita) faz alarde, grita, se manifesta, borbulha nas redes, anda armada, lança granadas. Em resumo, se faz notar. Na outra ponta, os de extrema-esquerda estão na moita, mudos, inaudíveis. Em princípio, deveriam estar aninhados em partidos tais como PCB, PC do B, PSOL. Mas não se ouve essa gente, não promovem mais greves como nos anos 1980, não fazem mais protestos. Portanto, embora uma parte da população se sinta próxima desse ideário, passa despercebida. Daí nunca se falar em extrema-esquerda.

      A direita, a velha e tradicional direita do DEM, por exemplo, está bastante apagada. Não souberam abrir caminho para novas lideranças. Por isso estão também inaudíveis.

      O resultado é que Bolsonaro e seus barulhentos devotos ocuparam o espaço vago. Se consideram “de direita” embora sua doutrina excludente, racista, homofóbica e classista denote serem extremistas. E perigosos.

      Pronto, distinta leitora, é como eu enxergo a coisa. Salvo melhor juízo, ficamos assim.

      Atenciosamente.

  2. Peço desculpas pela demora em responder.
    Sim, verdade, décadas passadas poucos eram os que se assumiram como sendo “de esquerda”. Mais precisamente os poucos que assim o faziam (e que até então pegaram em armas contra os militares naqueles tristes anos) fugiram do país (era o que lhes restava: isso ou xilindró e tortura) e voltaram somente quando da redemocratização do país. Questão de sobrevivência. Com relação a esse período, faço notar que o ÚNICO que, com todas as letras, disse e assumiu que o trabalho da guerrilha brasileira que lutava contra a ditadura militar era instituir uma ditadura comunista foi Fernando Gabeira – e ele tem meu total respeito por isso. Todos os outros, de Genoíno a Dilma, passando por José Dirceu e José Serra e Aloysio Nunes, sempre afirmaram que os guerrilheiros lutavam pela ‘democracia’ (sic).
    Os tempos voltaram e durante a Lava-Jato que culminou na prisão do chefe da quadrilha, não se via nem ouvia sequer um petista: caro senhor, ficar na encolha não é um pecado da direita, como quis fazer parecer sua resposta, mas uma questão de sobrevivência natural. Heróis de peito aberto são raros nos nossos dias e seu heroísmo de nada adiantaria.
    Após a redemocratização, foi a vez da “direita” ficar na encolha. PFL disfarçava, mas sabíamos que era “de direita”.
    Piada corrente: a diferença entre os partidos MDB e Arena à época da ditadura era que o primeiro dizia “sim” e o segundo “sim, senhor”. 
    Aí Bolsonaro comendo pelas bordas e desinibido, como diz o senhor, se declarou “de direita”: esse político histriônico e folclórico, como já escrevi antes em alguns comentários aqui no Chumbo Gordo, se apossou dos valores caros aos republicanos, fez um bem-bolado para chamar de seu e criou uma aberração a que deu o nome de ‘direita’. Essa exacerbação torta cuja bandeira ele levantou é vergonhosa – nada que seu contraponto, Lula, não tenha feito exatamente do outro lado do espectro, com os valores democratas.
    Claro está para quem quiser ver que o populismo de cada um arregimentou “revoltados” vociferantes – manifestações lamentáveis de ambos os lados estão aí para quem quiser ver. Se hoje a dita “esquerda” anda light, paz e amor, é porque os tempos agora lhe sorriem; quem tem memória lembra de quão degradante e prejudicial à sociedade ela pode ser e foi. E não precisamos voltar tão longe no tempo, mais precisamente a 1980 como o senhor exemplificou. Copio aqui texto da Gazeta do Povo de 05/09/2022 (https://www.gazetadopovo.com.br/eleicoes/breves/mst-sinaliza-que-pode-retomar-invasoes-de-terras-caso-lula-seja-eleito/): “Enquanto nos dois governos de Lula (2003-2010), foram 1.968 invasões. Na gestão de Dilma Rousseff (2011-2016), ocorreram, em média, 162 invasões por ano de governo. O governo de Michel Temer (2016-2018) registrou uma média anual de 27 invasões. Já na gestão do presidente Jair Bolsonaro, foram nove invasões por ano, como mostrou a Veja”. Como se vê, ela continua ativa e saudável.
    Ora, essa esquerda tão bovina quanto a direita, é massa de manobra do seu respectivo senhor. Verdade, não se fala em extrema-esquerda. Mas o fato de não se falar dela não significa que não exista. Ela está em estado de hibernação, assim como antes esteve seu oposto. Com certeza a velha direita está mais do que apagada: falta-lhe líder. Verdade também que o histriônico e folclórico Bolsonaro se apossou desse pedaço de chão e o chamou de seu com seus barulhentos adeptos (assim como para abrir caminho e conquistar seu latifúndio lulistas também já gritaram e muito). 
    Agora, vamos combinar: se tirar Lula do cenário, quem sobraria dessa assim chamada esquerda? O país se ressente de líderes. O que temos são arrivistas e populistas pouco se lixando para o tal do povo – caso eu não tenha sido explícita o suficiente, por arrivista e populista leia-se Lula e Bolsonaro.
    Quanto à “exclusão”, lembro que o grande inventor do “nós contra eles” foi Lula. Bolsonaro só aumentou os decibéis (https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2022/09/24/quem-criou-historia-do-nos-contra-eles-foi-o-pt-e-bolsonaro-adora-diz-ciro.htm). Aliás, Bolsonaro se apossou de muito pensamento de Lula e só fez exacerbar seu sentido, mas no seu contrário – a gangorra criada serve aos dois que precisam de um oponente para jogar pedra. Se um sair dessa gangorra a brincadeira acaba.
    O PT é classista, sempre foi e voltado somente para os seus. Se hoje faz esse oba-oba convidando outros partidos a formarem um ‘bloco democrático’ (sic) não é porque é generoso e inclusivo: depende deles para ter um suporte para o próximo governo, caso contrário, ele acredita, será difícil governar o país – os tempos são outros e o dinheiro fácil dos dois primeiros governos petistas para comprar adeptos não será tão abundante, mas nada que não se possa dar um jeito.
    O caso mais gritante para mim foi o de Lula ao convencer Marina Silva a apoiá-lo: a mulher foi fritada pelo governo Lula, pediu demissão em 2008 do seu cargo de ministra do Meio Ambiente porque todas as suas pautas foram solenemente ignoradas pelo governo que apoiou.
    Dizem – replico aqui o que ouço já que para mim esse senhor não me convence desde a época que começou a ficar famoso como sindicalista no final da década de 1970 – que o futuro presidente é muito comunicativo e convincente. Deve ser: conseguiu vender o mesmo carro usado sem carburador para a mesma compradora!
    Um espanto, não ele tentar o mesmo golpe, mas ela cair nele!
    Ao assistir ao belo discurso de Lula na avenida Paulista no dia 30/10/22 concordei com dois pontos: o primeiro, a bandeira brasileira não é propriedade de um único partido, é de todos os brasileiros. Segundo, indiscutível a capacidade de renascer das cinzas que Lula tem (não entrarei no mérito de como isso se deu, com toda a ajuda possível e impossível de um STF contaminado como esse que temos). Todo o resto do seu discurso foi uma repaginação de um anterior, de 2002, que lembro bem, me levou às lágrimas: a esperança deu lugar à decepção e ao repúdio.  
    Continuo a acreditar que a opção que nos foi dada entre este ou aquele no segundo turno foi a mais cruel possível para um povo: escolher o menor entre dois cânceres não é escolha. É suicídio.

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