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A doença da Carochinha. Por Silvia Zaclis

… Todos preocupados lá na mata. Dona Carochinha está doente. Bem, todos não, o lobo está achando a maior graça,…  mas ele é assim mesmo, não tem nenhuma empatia ou consideração pela dor dos outros.

dona carochinha

Todos preocupados lá na mata. Dona Carochinha está doente. Bem, todos não, o lobo está achando a maior graça,…  mas ele é assim mesmo, não tem nenhuma empatia ou consideração pela dor dos outros.

Os bichos se perguntam: como é que personagens podem adoecer, se suas histórias, que vêm sendo contada há séculos, não registram nem uma gripezinha? Dona Carochinha sempre vendeu saúde; descontando a tentativa de viver em Miami e o porre de licor de jenipapo quando compreendeu a real situação do seu reino, sempre mostrou disposição, coerência e serenidade.

Pois hoje não sai da cama, tem febre alta e calafrios;  não diz coisa com coisa.

Dona Benta, que não é de ficar entrando em história alheia, abriu uma exceção nesse caso; explicou que as histórias mostram os personagens no tempo de duração de uma história, coisa de uma dezena de páginas, ou uma hora e meia de projeção… ou ainda uns minutinhos de leitura enquanto as crianças não pegam no sono. No resto do tempo a vida continua, com alegrias e preocupações. “Mas amigos, não é hora de discutir esse assunto. E nem qualquer outro assunto”, disse. O desafio agora é tirar essa doença da frente, é curar esse sofrimento.  Tudo o mais pode ficar para depois…

Os  amigos que visitavam Dona Carochinha conversavam baixinho, trocando receitas e mezinhas, ora banhos quentes, banhos frios, ou chás de ervas, água de flores…

Alguém estava propondo trazer uma benzedeira de competência comprovada, mas parou no meio da frase quando viu chegar a doentinha, que tinha saído da cama e vinha, com passinhos de  lesma, sentar-se ao lado de Dona Benta, que logo colocou uma mantinha sobre as pernas da amiga.

Sua voz saiu fraquinha: “Meus amigos, obrigada pela atenção e carinho; com tantos cuidados  e remedinhos, tenho esperança de voltar à ativa logo, logo”.

Olhando o sorriso de alívio de seus amigos, deu um profundo suspiro e começou:

“Amigos, estou doente da alma. Sinto um peso no peito, uma vontade de chorar… Espero que vocês entendam. Aqui no reino as coisas costumam acontecer no ritmo ditado por mim e  meus personagens. Vem sendo assim há séculos, e tem funcionado muito bem. É claro que tivemos alguns problemas por conta do ego dos lobos, da… falta de inteligência das ovelhas (falou bem baixinho),  da arrogância da raposa, da teimosia da Cuca”…

Percebeu que estava se animando com a  lista e parou por aí mesmo; afinal, não queria ofender ninguém.

Suspirou ainda mais fundo e retomou o pensamento: “Domingo passado tive um pesadelo horroroso. Foi como se a linha do nosso tempo tivesse sido rompida… me deu até calafrio na espinha (alguns convidados se entreolharam; espinha? Joaninha tem espinha?). Percebendo o mal- estar, Dona Benta explicou que se tratava de uma metáfora… Ah, agora entendemos; continue, Dona Carochinha.

“Pois bem, no sonho eu estava em um grande descampado, uma terra seca, animais assustados procuravam sem sucesso algum verde onde há pouco havia tanto. Vi uma princesa vendendo sua coroa. Um sujeito oferecendo por preço baixo um remédio milagroso trazido do próprio estoque lá do Castelo… até o lobo mau estava no sonho, ensinava como fazer sopa de pedra com um ingrediente mágico criado por ele – imaginem, uma droga que já foi banida na mata…

Amigos, era um sonho, mas senti uma tristeza palpável… Estava quente, fui me abrigar à sombra de um rochedo quando levei um dos maiores sustos da minha vida. Encostado na pedra e com um olhar perdido estava… George Orwell!

Eu o cumprimentei e ele já foi dizendo: “Pois é, minha amiga, eu tentei avisar, alertar… vocês transformaram o horror do Grande Irmão em espetáculo de TV, confundiram fanfarrão com corajoso; insensível com justo e tomaram estúpido por sábio…

 E, tendo a imensidão árida como cenário, Orwell olhou bem nos meus olhos (Dona Benta pediu silêncio antes que alguém começasse a estranhar aquele olho no olho desproporcional…) balançou a cabeça com desânimo, deu-me as costas e foi embora. Acordei assustada, e estou assim até agora”.

Suspiros generalizados –  os visitantes estavam vivendo situação parecida, com ou sem pesadelo…

Um leve bater na porta e a pavoa foi atender… Como demorasse a voltar à sala, Dona Benta foi ver o que acontecia. “Mister Flash’, disse atônita, ’o que faz um herói da Marvel aqui no reino”.

“Minha senhora’, disse ele, o Ligeirinho da Looney Tunes ficou de trazer uma mensagem para uma certa Dona Carocha, mas pegou Covid e está em quarentena… aí a Marvel ofereceu ajuda… e aqui estou eu… Essa Dona Carocha tem bons contatos…

Gentil, The Flash entregou um envelope para Dona Benta… e sumiu… literalmente.

A avó dos meninos do sítio entregou o envelope à amiga. “Benta, estou tão fraca, não consigo carregar esse papel, leia para mim, por favor”.

Dona Benta colocou os óculos e leu:

“Cara Carocha, serei breve para que você não passe um minuto a mais sem saber da excelente notícia: um vento poderoso arrastou para longe a  nuvem escura que ameaçava se fixar sobre seu reino! Agora vamos fazer um levantamento dos estragos e começar uma nova fase de construção. Sua amiga, Fada Madrinha”.

A Carocha deu um pulo do sofá e se pôs a voar e cantar pela sala, parecia uma cigarra roqueira.

Por fim, cansada e aliviada, abraçou cada um dos seus amigos e sugeriu que fossem comemorar na casa de João e Maria… ‘tem uma  nova parede de chocolate sensacional, padrão Lindt.”

E lá foram eles pela mata, cantando e dançando de mãos dadas (essa nem Dona Benta consegue explicar ) Mãos? Numa joaninha?

Quem souber o endereço pode ir até lá; eles estão comemorando até agora…

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SILVIA ZACLISÉ JORNALISTA

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