
…O ‘PINTOU UM CLIMA’ DE JAIR BOLSONARO EXPÕE CONTRADIÇÃO…
… Bolsonaro, segundo Alexandre de Moraes, não pode ser incriminado por pedofilia. Tudo bem. Mas pode ser acusado de hipocrisia, porque, embora não tenha realizado um ato, confessou emoções de um pedófilo…
PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O GLOBO E NO SITE DO AUTOR, www.gabeira.com.br, EDIÇÃO DE 24 DE OUTUBRO DE 2022
Gostaria de discutir as mudanças climáticas. No entanto tenho de analisar a frase de Bolsonaro segundo a qual pintou um clima entre ele, sexagenário, e refugiadas venezuelanas de 14/15 anos.
No Brasil, os escândalos se sucedem, há o perigo de perder a sensibilidade ou mesmo perder o rumo, transitando, desordenadamente, entre um e outro.
A frase de Bolsonaro é importante porque revela a distância entre sua vida real e o papel que procura encarnar: defensor da religião, da família e dos valores tradicionais.
Não é a primeira vez que um homem mais velho confessa sua atração por meninas. A literatura tem um exemplo célebre, o romance “Lolita”, de Vladimir Nabokov.
No entanto o personagem do romance, Humbert Humbert, que escandalizou sua época, não é um presidente da República, não se define como um baluarte da família tradicional nem grita “Deus acima de todos” diante da multidão.
Bolsonaro, segundo Alexandre de Moraes, não pode ser incriminado por pedofilia. Tudo bem. Mas pode ser acusado de hipocrisia, porque, embora não tenha realizado um ato, confessou emoções de um pedófilo.
Na verdade, para quem acompanha a carreira política de Bolsonaro, essa versão piedosa de um homem virtuoso com a Bíblia na mão não bate com a realidade.
Para começar, ele conhece bastante bem a expressão “pintar um clima” e sempre a utilizou, vídeos demonstram isso, com conotação sexual. Bolsonaro sempre usou uma linguagem de vestiário masculino. Sua vida sentimental é parecida com outras vidas modernas que passam por mais de um casamento. Ele sempre diz palavrões e faz comentários do tipo amizade heterossexual quando se refere a alguém próximo. Na verdade, é fixado nesse tema: viu na própria vacina a ameaça de homem falar fino e de crescer barba nas mulheres.
Um dos passaportes para a santidade foi o batismo no Rio Jordão, realizado por um pastor que, por sinal, foi preso por desviar dinheiro público.
Antes disso, era um fervoroso defensor da limitação da natalidade para combater a pobreza. Dizia em seus discursos que a Igreja era responsável pela miséria no país, pois se opunha a um programa de laqueadura.
… É uma versão política daquela máxima: Deus escreve certo por linhas tortas. Mas, neste caso, Deus não só estaria escrevendo por linhas tortas, mas usando uma caligrafia horrorosa…
Seu nicho eleitoral eram famílias de militares. Mais do que os outros deputados, usava cartas como instrumento de comunicação com seus eleitores.
De repente, Bolsonaro, sem alterar sua linguagem e sentimentos, passa a falar para evangélicos e decide encarnar o líder político e espiritual que salvará o Brasil dos banheiros unissex, das mamadeiras de piroca, do aborto e da exploração sexual de crianças.
Quando ele mesmo confessa seus olhares libidinosos para pobres venezuelanas de 14/15 anos, era para seu mundo cair. Tanto seus adversários quanto o mundo político e a mídia foram todos complacentes com essa gigantesca contradição.
Seria o mesmo que um líder da luta contra a corrupção aparecer com milhares de dólares na cueca. Os movimentos no interior das cuecas brasileiras parecem chocar apenas quando se trata de fatos monetários.
Toda essa gigantesca invasão da política pelas teses religiosas está, na verdade, baseada numa farsa. Bolsonaro, nesse sentido, é realmente um mito.
Curioso que isso aconteceu parcialmente com Trump nos Estados Unidos. E os líderes religiosos que o apoiavam disseram: é um homem sem virtudes, mas foi o escolhido para nos dirigir. É uma versão política daquela máxima: Deus escreve certo por linhas tortas. Mas, neste caso, Deus não só estaria escrevendo por linhas tortas, mas usando uma caligrafia horrorosa.
A frase de Bolsonaro sobre vulneráveis refugiadas, pobres, descoladas de seu país, cultura e idioma, é um sintoma de uma grave doença na sociedade brasileira. Um presidente não poderia sentir e falar isso, muito menos um presidente que se diz líder do Brasil religioso, defensor da família e toda essa cantilena que grita nos comícios.
Aceitar o “pintou um clima” de Bolsonaro é, na verdade, aceitar um clima pestilento que nos levará a tempos mais sombrios ainda.
Costumo concordar com seus textos, Gabeira, que, aliás, admiro pela coerência e lucidez.
Mas este não seguiu tal regra.
Pode-se dizer que Bolsonaro é hipócrita? Com certeza! E machista também: não é justificativa, é uma constatação, foi a educação italiana que recebeu onde o desejo de boa sorte nos casamentos se traduzia com “auguri e figli maschi”.
Parece que para o articulista o presidente é, porém, o único a merecer de fato tal adjetivo.
Não haverá em toda a santa Brasília outro hipócrita, que horror! – (circunscrevo o perímetro para a capital federal para fins meramente didático-políticos, já que o epíteto encontraria exemplos a mancheia por todo o país e em todas as áreas: atire a primeira pedra, Gabeira).
Enviar carta aos líderes evangélicos na tentativa de se aproximar de um nicho que cresce todos os dias – e, portanto, com possibilidade de milhares de votos (é disso que se trata) seria exatamente o quê para o articulista? Ato de boa vontade? Nem uma pontinha aí de hipocrisia?
Ironicamente o texto foi lido por ninguém menos do que Gilberto Carvalho, aquele cujo nome também esteve envolvido – para citar somente um escândalo – no assassinato de Celso Daniel (não foi tentativa de, menos ainda plano que só ficou no nível das ideias: foi a sua consecução) cujo desfecho até hoje carece de esclarecimentos devidos e varrido para baixo do tapete, já que todas as testemunhas convenientemente morreram, assim como também o primeiro médico legista do caso que apareceu ‘suicidado’ e a mídia… ora, a mídia.
Como comentei em resposta a artigo de Alexandre Henrique Santos neste blog – que entendeu que agora pensamento é crime (já pensou?) – mostre-me o defeito de um dos candidatos à presidência e encontrarei similar no outro.
A citada linguagem de vestiário masculino de um encontra eco na linguagem de sindicalista de outro (aqui, Jandira Feghali em 2016 enquanto diz que Lula está ‘tranquilo’ ele, atrás, vocifera impropérios ao telefone: https://www.youtube.com/watch?v=Y9e_YaoxAD8 / aqui, em 24/08/2017 na Bahia, destratando subordinado num linguajar fino e educado: https://www.youtube.com/watch?v=WfwHCa0AzIM).
Já a também citada complacência de adversários tanto quanto do mundo político com os “olhares libidinosos” do presidente para pobres meninas venezuelanas também encontrou equivalência num certo evento de 1980, quando Lula tentou assediar sexualmente um ‘cumpanhêro’ – o que ali houve foi bem mais do que um mero “pintou um clima” e, no meu entender, bem mais grave do que um pensamento; de fato, foi a tentativa de estupro que veio à tona em 2009 e prontamente rechaçada por Gilberto Carvalho (olha ele aí de novo) e todo o PT. A vítima até hoje prefere não falar sobre o assunto e inclusive se desfiliou do partido (aqui: https://www.dn.pt/globo/cplp/lula-acusado-de-sevicias-sexuais-nos-anos-1980-1440250.html); jogou-se mais uma vez para baixo do tapete um evento desabonador sobre esse torneiro-mecânico, milagre da política brasileira. Imagino que argumentos foram usados para que Benjamin nunca confirmasse tal história.
Encontrou também complacência naquela situação para lá de vergonhosa para a primeira dama, dona Marisa Letícia, de ter de dividir o marido com a ‘amiga íntima’ dele, Rose Noronha, inclusive em viagens oficiais (aqui: https://jfolharegional.com.br/mostra.asp?noticias=38482). E aqui mais uma equivalência: a educação machista de Lula ainda tão presente em todo norte e nordeste do país.
Ambos são fruto da natureza particular de cada um associada ao meio em que viveram e foram criados – assim como todos nós – e até poderiam mudar caso vontade houvesse para isso, coisa que não há.
São o que são e entre esses dois senhores a espada de Dâmocles pendula num vai e vem tenebroso sobre a cabeça do Brasil. Uma ironia ter de escolher entre um e outro.
Os exemplos poderiam continuar: Bolsonaro e Lula se EQUIVALEM na letalidade que carregam consigo, cada um a seu modo, para o país.
Nem um, nem outro.
Porém só se lembrar dos pecados (tristes e infames) de um deles se esquecendo convenientemente de tudo o que o outro foi, fez e é, para mim não é honesto, principalmente em se tratando de profissionais de jornalismo (que deveriam fornecer notícias através dos fatos tendo sempre a lembrança de eventos anteriores como subsídio a esclarecer o público) e cuja memória ultimamente parece ter entrado em estado de proposital esquecimento, uma esclerose mental sabe-se lá o por quê – ou pior, em conivente stand by.
Um dia saberemos.