Como nos velhos filmes. Por Antonio Contente
… Como frequentadores, os mesmos negros, indianos, chineses, malaios ou o que lá fossem as figuras que vira nas ruas. Sento no balcão e, me sentindo o próprio desbravador de alguma coisa, peço o tal do “Jenever”…
O Suriname, antiga colônia holandesa acima do Maciço das Guianas, conseguiu sua independência em 1975. Logo depois, já nos anos 80, caiu sob a ditadura de um general chamado Desi Bouterse. Um pouco mais adiante, com o milico ainda no poder, a mando do jornal no qual eu trabalhava à época, fui para lá a fim de narrar como iam as coisas. E assim, naquela manhã, estava eu na janela de um pequeno hotel em Paramaribo, a capital. De onde sacava o cenário de um dos velhos filmes americanos da década de 40 que se passasse em cidades do Caribe, Extremo Oriente ou Ilhas dos Mares do Sul.
Avistava casas de madeira cobertas com zinco, carros americanos de luxo misturados a calhambeques, e uma profusão de raças a se cruzar nas calçadas movimentadas: chineses, negros, indianos e, naturalmente, europeus, provavelmente holandeses, a envergar ternos brancos que refletiam a luz do sol. De vez em quando, passava um jipe com soldados fortemente armados a envergar uniformes de campanha.
Na manhã, após descer de um sucateado Boeing 707 da falecida Panam, com uns 100 anos de uso, me enfiei no tal hotel, não longe do porto. O que, pela janela acima citada, me permitia avistar também mastros e chaminés de navios, e até uma nesga de mar coalhada de embarcações pequenas. Só no fim da tarde tomei um banho e saí.
Ao caminhar pelas ruas uma das coisas que precisava apurar, como repórter, era se a situação pós-colônia levara, ou não, a dias melhores. E como o entorno me parecia relativamente desorganizado, comecei a concluir que, na melhor das hipóteses, tudo continuava mais a favor da esculhambação do que o contrário. Andei indagando de algumas pessoas, mas a maioria parecia ter medo de falar.
Quando já escurecia me lembrei da indicação que me fora dada por um médico inglês que sentara a meu lado, no avião.
— Não deixe – ele me disse – de ir tomar uns drinques num boteco chamado “Old Dutch Man”. Peça um “Jenever”, esplêndido destilado holandês.
Na rua, pergunto a um guarda de trânsito sobre o lugar e ele me indica que bastaria atravessar a calçada e dobrar à direita.
Entro no tal bar e alguma coisa me acontece. Pois sou literalmente tomado pelo cenário da biboca na qual foram feitas as cenas iniciais, a da briga, do delicioso filme “Crocodile Dundee”. É verdade que o local parecia mais bem, digamos assim, decorado. Porém lá estava o balcão, alguns velhos tonéis de rum servindo de mesa, e o indefectível ventilador de teto. Como detalhe sofisticado, o piano, a um canto. No instante em que cheguei o pianista, um negro grande com mãos imensas, atracado ao teclado tocava, aliás de forma impecável, “Falling Love With Love”, de Richard Rodgers e Lorenz Hart, se não me falha a memória. Como frequentadores, os mesmos negros, indianos, chineses, malaios ou o que lá fossem as figuras que vira nas ruas. Sento no balcão e, me sentindo o próprio desbravador de alguma coisa, peço o tal do “Jenever”.
— Com que? – Pergunta, prosaicamente, o barman.
Como se o espírito de John Wayne tivesse baixado em mim, quase esmurro o balcão, ao rosnar:
— Puro!
Chegando a bebida, ao primeiro gole senti que um vulcão acabara de entrar em erupção nas minhas entranhas.
De todo modo, ficar olhando o movimento no “Old Dutch Man” foi uma festa. Não sucedeu nenhuma briga cinematográfica, o pianista permaneceu, impávido e colosso, como um Bob Short em plena Manhattan. Lugar este, aliás, título de outra música famosa de Rodgers e Hart que, a meu pedido, foi tocada duas vezes.
De inesperado, apenas a chegada de um grupo de brasileiros, ali pelas 22 horas. Como já eram conhecidos no local, mal entraram o tecladista atacou, bravamente, de “Aquarela do Brasil”. Turistas? Não, contrabandistas. Era impressionante, à época, o número de barcos verde e amarelo que atracavam em Paramaribo carregados com pimenta-do-reino do Pará. Bem no passado, antes da renúncia do presidente Jânio Quadros, era café e cacau que levavam, pegando em troca carros americanos último tipo. Depois, na época da pimenta a troca passou a ser pelas quinquilharias de praxe, perfumes franceses, uísques escoceses, cigarros americanos e ingleses, rádios, gravadores e relógios nipônicos.
Preparei-me para sair do boteco quase à meia-noite, quando os brasileiros, atipicamente, estavam silenciosos entretidos pelas mulheres, a maioria indianas. O barman me pergunta:
— Outro “Jenever”?
— Não –aponto – isso é uma bomba atômica. Vou de água.
Ele abriu um sorriso, que mostrou reluzente dente de ouro, no flanco esquerdo. Parei ainda um pouco, ao caminhar para a porta. Apenas a tempo de ouvir o maravilhoso pianista que atacava de “Tie a Yellow Ribbon Round the Old Oak Tree”. Uma verdadeira maravilha.
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ANTONIO CONTENTE –
Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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Maravilha como tudo que vc escreve nos transporta para o local,como se lá estivéssemos fisicamente