É compreensível que o Brasil esteja mergulhado no debate sobre o segundo turno das eleições. Afinal, o futuro está em jogo. Mas chega a ser desanimador ver o debate nas redes sociais sobre satanismo, canibalismo e outras aberrações, quando sabemos o que nos espera na virada do ano.
No início de 2023, o novo presidente, possivelmente com a oposição de quase metade do País, terá de tratar não apenas da crise econômica, das bombas fiscais montadas por Bolsonaro, mas também de uma conjuntura internacional adversa.
É possível dizer que agora é um momento de paixão e que as reflexões pertencem ao futuro. Mas o período eleitoral é uma excelente oportunidade para definir rumos, trocar ideias, não só porque há nuvens sombrias no horizonte mundial, mas também porque o Brasil está atrasado em inúmeros campos essenciais para sua sobrevivência.
A questão mais ampla diz respeito às mudanças climáticas. Com o potencial de nossos recursos naturais, é necessário não só assumir compromissos, como delinear uma política de redução de emissões, reorientar a economia, atrair investimentos, enfim, correr atrás do tempo perdido.
Da mesma forma, o chamado bônus populacional, que é a grande presença de jovens, pode ser perdido se não houver uma política adequada para integrar a juventude no mercado de trabalho, se não forem abertas novas perspectivas.
Também no campo do digital estamos atrasados. Num livro recentemente lançado no Brasil, Jaideep Prabhu mostra como a Índia conseguiu tornar eficaz seu sistema de ajuda social, por meio da criação de um gigantesco programa de identificação digital. Eram milhões de dólares que desapareciam no ralo de uma distribuição incompetente, algo que ocorre hoje por aqui. Isso é apenas um aspecto do problema. O mais importante talvez seja o de superar a distância na possibilidades de acesso entre crianças pobres e ricas.
Não se sabe ao certo o que pode acontecer no mundo. Mas a guerra na Ucrânia deve prosseguir, a crise energética europeia deve atingir seu ápice no inverno e as ameaças, que pareciam sepultadas, de conflito nuclear, voltam a assombrar.
Num quadro tão sombrio, como traçar o caminho de um país que sai das urnas dividido? O primeiro impulso é confiar na sensibilidade política do eleito. É uma aposta, mas não se pode jogar nela todas as fichas.
Talvez seja impossível alterar o processo de insultos e fake news na internet. Mas, certamente, há algo a fazer na cena política mais ampla, que compreende não só profissionais, mas todos os que participam do debate, inclusive os meios de comunicação. Talvez tenhamos ido longe demais no processo de desgaste do debate democrático. Ele precisa ser revivido, novas ideias, para além da polarização, têm de circular e um clima de renascimento precisa se instalar para que o País avance.
Tudo isso parece romântico e fora da realidade. Não só a internet favorece confrontos ou depende de indignações. É uma realidade também da imprensa: um dos seus motores é o conflito, uma espécie de antídoto permanente contra o tédio da vida cotidiana. Mas, se conseguirmos convencer a maioria de que estamos diante de grandes dilemas e que se não tomarmos as decisões acertadas perderemos o bonde da História, no sentido de que o País será sempre de segunda categoria, quem sabe algo pode sair desse esforço?
Um importante exercício num país dividido é levantar minuciosamente os temas que podem nos unir. O que é possível fazer para que o interesse nacional prevaleça, em que campos os adversários podem se encontrar, ainda que momentaneamente? Nos EUA, já houve vários momentos em que republicanos acharam um ponto de contato. Ninguém saiu perdendo e ninguém passou a duvidar de seus princípios políticos. Simplesmente, há ocasiões em que todos ganham, porque o país também ganha.
Uma das possibilidades com a passagem do período eleitoral é o processo de reavaliação que todas as forças políticas envolvidas nele costumam fazer.
A oposição entre PSDB e PT não era um modelo ideal, mas nos colocava mais perto de acordos pontuais. Tão cedo não voltaremos a esse tipo de relação política menos turbulenta. No entanto, um esforço social inédito para recuperar o País pode não só esfriar o clima, mas canalizar um pouco dessa energia negativa para algo que precisamos desesperadamente em 2023.
Ainda viveremos quase três semanas num clima intenso de eleições, no qual os candidatos tentam aumentar o nível de rejeição do outro e narradores contam histórias escabrosas para assustar os incautos. Em breve, acordaremos com a eleição resolvida e uma gigantesca tarefa pela frente. Não escrevo ainda para mobilizar, mas apenas para que não se assustem ao amanhecer do novo ano.
Entre as eleições e a posse, certamente será preciso debater não só propostas de governo, que rarearam até agora, mas principalmente que interferência poderemos ter num ânimo de reconciliação e diálogo.
Um dos espaços que podem ser influenciados é o Congresso, apesar de sua composição. Sempre foi majoritariamente de direita, ficou mais radical agora, mas ainda assim tem algumas janelas para o País.
A grandeza da tarefa às vezes desanima. Mas é o país que temos e simplesmente não podemos desistir dele, sobretudo agora.
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Fernando Gabeira*– é escritor, jornalista e ex-deputado federal pelo Rio de Janeiro. Atualmente na GloboNews, como comentarista. Foi candidato ao Governo do Rio de Janeiro. Articulista para, entre outros veículos, O Estado de S. Paulo e O Globo, onde escreve às segundas. Programas especiais – reportagens – para a GloboNews. Semanalmente, o podcast Fala, gabeira! – no YouTube
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