LAICOS

Por um Estado e Democracia laicos. Por Alexandre H. Santos

… Inspirado pela abjeta mistura de política com religião, que se tornou o pão de cada dia nesse triste país, decidi voltar a Spinoza. Ainda me causa assombro a acurada perspicácia do precursor do Estado e da Democracia laicos.

apostasia

“O verdadeiro fim do Estado é, pois, a liberdade.”

Spinoza

Pela milésima vez dei-me conta de que ninguém lê impunemente. Inspirado pela abjeta mistura de política com religião, que se tornou o pão de cada dia nesse triste país, decidi voltar a Spinoza. Ainda me causa assombro a acurada perspicácia do precursor do Estado e da Democracia laicos. Se o filósofo ressuscitasse hoje veria, talvez sem grande surpresa, que a humanidade continua primitiva, ignorante e violenta.

As evidências do nosso atraso são múltiplas, diversas e se mostram num gradiente que vai desde a guerra na Ucrânia (fonte de lucros bilionários da indústria bélica) até talentosos especialistas em tecnologia da informação capazes de destruir vidas e reputações com um mero clic: lançando no éter das redes sociais mentiras e calúnias com imagens e sons tão perfeitos (deepfakes) que nem Deus diria que foram alterados… Um inventário sem fim.

Mas voltemos ao filósofo luso-holandês aqui ressuscitado, seu grande susto viria mesmo, não dos avanços da ciência, mas da constatação de que, já entrado o século XXI, a espécie sapiens mantem firme sua estupidez de misturar política com religião. Bem, poderíamos alegar, em prol dos nossos esforços para construir a civilidade, que não é completamente assim. Afinal, consta como cláusula pétrea da nossa Constituição que o Estado é laico. A Lei, ora a Lei!

Os políticos não têm manifestado o mínimo pudor ao invadir o espaço reservado ao divino. Em contrapartida, as religiões decidiram revidar, e hoje temos prepostos dos terreiros, mesquitas, sinagogas, igrejas e templos participando da vida política e na gestão dos órgãos públicos – o mimetismo abrange a mais humilde das repartições e mesmo o Supremo Tribunal Federal. O pior e mais daninho efeito dessa metástase é que a própria Democracia começa a desidratar sua essência laica.

Inúmeros acadêmicos e estudiosos destacam Spinoza como um dos cinco maiores filósofos que a humanidade tomou conhecimento. Faleceu em 1677, aos 44 anos, interrompendo o auge da sua maturidade intelectual. Os biógrafos atribuem sua frágil saúde às condições insalubres do polimento de lentes – trabalho que lhe dava o sustento. Contudo, ninguém duvida que tenha contribuído para sua morte prematura o profundo desencanto com o retrocesso político e a violência que puseram fim à república e à liberdade de pensamento que até então ele gozava…

A História nos ensina que todas as vezes que Estado e Democracia se amalgamaram com religião, qualquer religião, o efeito irreversível e imediato foi a decadência do Estado e da Democracia. A venenosa mistura de ideias políticas com crenças religiosas aparece com maior vigor e frequência nos governos de cunho autocrático. Aqui os poderosos se utilizam da fé popular para criar preconceitos, perseguir desafetos, manter privilégios e estancar pleitos sociais. No Ocidente, o melhor modelo desse terror quiçá tenha sido a Inquisição Espanhola; no Oriente Próximo, o exemplo mais bruto e atual é o Estado Islâmico. Fica evidente que o Brasil precisa se livrar disso.

Crença religiosa é como preferência política, escola de samba e time de futebol: trata-se de uma questão pessoal e do direito privado de cada cidadã ou cidadão. Religiosas e religiosos dos mais variados credos, deixem a política para quem é do ramo. Políticos e políticas de todos os partidos, evitem o território do sagrado. Políticos e religiosos deixem os ateus viverem felizes e em paz!

Urge aos Poderes constituídos resgatar com urgência o mando da nossa Constituição: a laicidade da República Federativa do Brasil. Só a partir do império dessa condição, poderemos garantir a integridade plural da Democracia. No fundo, nos deparamos com a bifurcação de sempre: civilização ou barbárie.

Em Aparecida do Norte ontem, 12 de outubro, dia da Padroeira do Brasil – símbolo nacional da compaixão, a mistura de política e religião reeditou comício, cenas de ódio e violência. Supostos cristãos católicos agrediram aos berros um homem que usava camisa vermelha e uma equipe do jornalismo televisivo. Ali, justo no lugar e na ocasião que deveria inspirar amor, acolhimento, paz e compaixão.

A falta de tolerância e comedimento tem tomado conta do Brasil, bem diante dos nossos olhos. Hannah Arendt tinha Spinoza em mente quando denunciou com sua famosa expressão “a banalização do mal”. Muita gente só se dará conta da barbárie quando o ódio e a violência atingirem uma pessoa querida. Mas aí será tarde demais!

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Foto: @catherinekrulik

*Alexandre Henrique Santos – Atua há mais de 30 anos na área do desenvolvimento humano como consultor, terapeuta e coach. Mora em Madri e realiza atendimentos e workshops presenciais e à distância. É meditante, vegano, ecologista. Publicou O Poder de uma Boa Conversa e Planejamento Pessoal, ambos editados pela Vozes..

Acesse: www.quereres.com

Contato: alex@ndre.com.br

 

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