Gruta e bacalhau. Por Silvia Zaclis
Ainda achava que ele está exagerando, não é o caso de ir se enfurnar naquela gruta como se fosse um bicho fugindo de uma perseguição implacável.
Só quando o encontrei improvisando uma estante de livros com pedras, é que compreendi que não estava brincando.
– Sério, você vai mesmo se mudar para cá? – perguntei, meio de gozação.
Enquanto ajeitava os volumes nas devidas prateleiras, ele respondeu:
“Minha decisão é lógica, não vejo motivo para surpresa… Se o filósofo Diógenes resolveu morar num barril, eu posso muito bem viver aqui. Depois de arrumar a caverna, vou poder até receber algumas visitas.”
Pedi que me explicasse de que raios ele estava falando. Se essa era a questão, eu disse, garanto visitas a toda hora, mas não aqui nesse endereço absurdo…
Mas comecei a ficar realmente preocupada quando vi um canto uma lamparina antiga, daquelas de carregar, com alça e tudo.
“Decidi seguir os passos de Diógenes”, explicou meu amigo. “Tenho andado por aí com minha lamparina acesa, concentrado na busca de um homem honesto. Ou mulher, claro…”
Nem precisei perguntar, e ele já veio com a resposta: “Não, até agora nada.”
Para que raios ele precisava de uma pessoa honesta a essa altura do campeonato não me dei ao trabalho de esclarecer. Nem foi preciso; na mesma hora, ele começou uma enxurrada de argumentos desconexos. “Quer saber por que estou me mudando para longe de tudo? O Bolsonaro chamou o nordeste de “meu nordeste”; o Lula se proclama inocente; o Tarcísio planeja desmantelar o Comitê de Saúde de São Paulo já que “não é mais necessário”; o Haddad diz que “o povo deixou claro nas urnas que quer Lula”, sem levar em conta as pesadas vitórias da turma do outro no Legislativo e Executivo; o atual presidente quer aumentar o número de juízes no STF para que possa controlar o órgão; e o dito cujo ainda está distribuindo (nosso) dinheiro ao estilo do Cassino do Chacrinha; quem quer bacalhau…?? Quem quer picanha? Esse é o Lula, também preocupado com o teor de proteína na alimentação do povo.
Bolsonaro cortou bilhões da Educação, detonou o Ministério da Cultura, atua como agente nada secreto de uma teocracia perigosa. E isso nem é o pior; o pior é a estratégia. Até a boa imprensa entrou nessa; a cada dia, especula-se junto às fontes qual será a estratégia das campanhas para as próximas semanas… É como se preocupar com a embalagem de um pacote que não tem nada dentro.
Ou, ainda pior, um pacote que tem, sim, algo dentro, mas algo terrível que não se deve revelar. Então foi assim que, para manter alguma esperança, elegi como meta pessoal encontrar uma pessoa honesta. Minha estratégia é sair por aí com a lanterna, na esperança de encontrar uma luz. Se eu achar um, é bem possível que existam outros…”
“Ô, cara, e o que isso vai mudar”, perguntei já bem irritada.
“Só vou saber quando encontrar um”.
Resolvi me calar. Ficamos mais um tempo ajeitando os livros e eu me despedi desejando boa sorte.
Vai saber.
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SILVIA ZACLIS – É JORNALISTA
Silvia, ocorreu-me um vislumbre sobre o que o Diógenes tupiniquim deveria fazer ao encontrar a pessoa honesta: convencê-la outorgar um testamento vital dispondo que, ao partir desta pra melhor, seu corpo deverá ser embalsamado e exibido num museu, para que os brasileiros do futuro possam ver para crer, qual São Tomé !
Não deixa de ser uma ideia original… e educativa! Vou sugerir aos responsáveis!!! Por enquanto, o sujeitio continua à procura… quase já sem pavio…
Adorei a leitura; pensei em sugerir uma continuação: ele encontrou a pessoa (ou animal)…. Como ela seria? Onde estaria vivendo? Com quem???? Perguntas e mais perguntas…..
O pessoal enrá procurando até hoje, é decepção atrás de decepção… melhor a gente esperar sentada…