José, abra essa porta! Por Aylê-Salassié Filgueiras Quintão*
O dia seguinte
Quanto tempo toma do brasileiro esse bate-boca eleitoral improdutivo, que poderia acontecer, com os mesmos personagens, num cafezinho na cozinha do Palácio da Alvorada ou num boteco na periferia de São Paulo ou do Rio de Janeiro? Imobiliza o país por três a quatro meses para ouvir disparates de dois sujeitos que concorrem entre si, e até consigo mesmo, à Presidência da República do Brasil, ganhando amplitude numa mídia que se pretende séria:
– Fulano comeria carne humana! O outro diz: “É satanismo!“. Vem a resposta: “Perseguia os cristãos!“. “Chefe de quadrilha!”. Repercutindo a acusação, afirma-se que o oponente é “Chefe de milícia“. A tréplica ganha cores divisionistas: “O nordestino que tiver vergonha na cara não vota em fulano!”.
E assim vão os candidatos a Presidente de um País com 220 milhões de habitantes. A população, que não pensa nada daquilo. Se pensa não fala, assiste estupefata. Agressivos, os candidatos são opacos. O eleitor é quase um suicida.
Enquanto no Brasil prossegue essa discussão inócua entre um “maluco e um corrupto”, segundo um colega jornalista, Vladimir Putin, a Rússia, transporta armas nucleares para a fronteira da Ucrânia, e bombardeia, com mísseis, o centro de 15 cidades ucranianas. Revela-se uma disposição desiquilibrada para desencadear uma guerra nuclear. Um conflito desses, entre a Rússia e os Estados Unidos, poderia provocar a morte de cinco bilhões de pessoas. Extinguiria áreas produtivas de alimentos em várias partes do mundo. Mais de 75% da população remanescente morreria de inanição em dois anos. É o que mostra um estudo publicado pela revista Nature Food, edição de agosto, desenvolvido pela pesquisadora Lili Xia, da Universidade de Rutgers (EUA).
Mesmo diante de um cenário como esse, no Brasil, dois indivíduos ocupam palanques induzindo os cidadãos a se confrontarem. Eleitores de boa-fé ainda tem a coragem ou a ingenuidade de cobrar dos candidatos propostas para a economia, enquanto a pauta de costumes avança pelas bordas. Vem por aí enormes desafios. O mundo está no limiar de uma mudança profunda nas estruturas do pensamento filosófico, nos modelos de desenvolvimento e de áreas de influência, difusamente presente em todos os segmentos da sociedade. A esperança de paz conduzida pelas tecnologias redentoras desemboca em avanços tecnológicos na produção de armamentos sofisticados. Confirma-se o que Thomas Hobbes disse há 500 anos: o homem vive em estado de guerra permanente.
A terra gira, a população cresce (deve chegar a 9,7 bilhões em 30 anos). As necessidades e demandas multiplicam-se rapidamente, tendendo a revirar os usos e costumes de cabeça para baixo, quebrando leis, preconceitos e diferenças de classe que se amparam nesses antagonismos políticos e em cenários extintos pelas impropriedades históricas. Todos esperam soluções mágicas. O cidadão melhor informado vive aterrorizado com o futuro, cuja aproximação não faz parte de nenhum programa eleitoral.
Concomitante, crescem as necessidades de subsistência humanas e os ambíguos desejos de consumo das elites, despreocupadas com as carências expostas. O economista francês Tomas Piketty revelou, num livro sobre “o capital nos século XXI” que , nos países desenvolvidos, a taxa de acumulação de renda é maior do que as taxas de crescimento econômico, e que os privilégios concedidos às grandes fortunas (empresários, banqueiros, latifundiários, magistrados e parlamentares), chamados de gastos fiscais – o governos abrindo mão de receitas públicas para segmentos privados – tendem a conduzir o Estado a uma grande crise de recursos .
Observa-se que uma nova confraria antiliberalismo, reunindo China, Índia, Rússia, a Africa do Sul e o Brasil (BRICS) vai, aos poucos, sendo configurada. Trata-se de uma frente que oscila claudicante dentro de idealizações duais. Esse pessoal quer enterrar o FMI, o Banco Mundial, a OMC, OPEP, as bolsas de valores, o sistema financeiro mundial, a AIEA, os Estados Unidos, a hegemonia europeia e até o dólar e o euro como moedas comerciais. Nesse cenário, o Mercosul estaria condenado. O grupo não oferece, entretanto, ainda, nada claro para reorganização desse novo mundo. XI JinPing deve ser reeleito nos próximos dias na China. Estão esperando um brasileiro por lá.
O Brasil seguiu até aqui soluções próprias, quase sempre irreais, para amparar mudanças imaginárias e fantasiosas. Darcy Ribeiro dizia “Temos todas as possibilidades de fazer o Brasil dar certo. Basta proibir o passado, e se imprimir no futuro”. Sobre o futuro, não se tem nenhuma perspectiva em vista por aqui. Os cidadãos estão indo para uma segundo turno de eleições, sem saber em que patamar a economia brasileira está ou como poderá ficar. Assusta. Depois de 300 anos de colonização e mais 200 anos de independência, o Brasil não descobriu seu destino até hoje. E, vem aí, neste final de ano, mais um milhão de profissionais saídos das universidades.
A pauta de costumes espelha uma revolução cultural, com passeatas de 1 milhão de LGBTs pela Avenida Paulista, ou de índios pela Esplanada dos Ministérios, ou redes sociais da negritude e a libertação da mulher, todos buscando seus direitos civis. Afloram novas atitudes sociais, afetando as estruturas arcaicas remanescentes e introduzindo falsidades (fakes), com a desqualificação dos poderes e dos governantes. Incrivelmente, ganha legitimidade de uma Justiça omissa e se fortalecem junto à população.
As eleições no Brasil, neste momento, desenrola-se, portanto, em um cenário de “guerra entre os homens”, na qual transitam, opacos, dois sujeitos com vagas ideias, e não programas. Segundo o romancista brasileiro Bernardo de Carvalho, trata-se de uma “Cruzada dos Irresponsáveis – uma procissão de pulhas, manipuladores, embusteiros, estelionatários, fariseus, milicianos, matadores de aluguel, comungando os mesmos objetivos“.
Como seria, portanto, o dia seguinte do vencedor? Ao acordar, tarde, desgastado, derrubado igual ao perdedor, súbito emerge a realidade: permanece as mesma.
“Aquela miséria ao redor, a fome, os desempregados, o analfabetismo. Descobre que está de volta ao mundo da mediocridade, da mesquinharia, de onde nunca deveria ter saído”, observa Bernardo de Carvalho. Assumira compromissos em cima de ideias estúpidas. Sem revelar seus pensamentos recônditos, vai terminar mesmo concluindo de que está cercado de bandidos de todos os gêneros e modalidades. A democracia se realizou, entretanto, com o voto do cidadão.
– José, abra essa porta! Colombo, fecha as portas dos seus mares!
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Aylê-Salassié F. Quintão – Jornalista, professor, doutor em História Cultural. Vive em Brasília. Autor de “Pinguela: a maldição do Vice”. Brasília: Otimismo, 2018
E autor de Lanternas Flutuantes: