não entender

Luto

Algumas vezes é preciso não entender. Por Myrthes Suplicy Vieira

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Luto

 Algumas vezes é preciso não entender

A frase acima foi dita originalmente por Anna Verônica Mautner, psicóloga, psicanalista e escritora altamente provocativa, que foi também minha professora na USP. Na ocasião, ela havia sido chamada a explicar por que uma pessoa até então dita “normal” atingira um grau de crueldade tão inaudito. O caso era o de um homem que pensava em se suicidar e, de última hora, achou por bem jogar antes mulher e filho pela janela do 13º andar. Para piorar, no último instante, ele recuou de seu intuito e acabou preservando a própria vida.

O pasmo, a incompreensão, o estado de choque tem paradoxalmente um impacto esclarecedor e reumanizador poderoso sobre nosso psiquismo, mais forte talvez do que qualquer explicação científica ou policial. Servem de alerta que sempre estamos sujeitos a ultrapassar os limites civilizacionais e embarcar numa jornada inumana de destruição de tudo à nossa volta. Não há como explicar o inexplicável por mais que se tente: pulsão de morte, o mal-estar na cultura, a dimensão trágica da existência, o niilismo, a alienação, o predomínio da emoção sobre a razão, tudo isso pode servir de justificativa temporária apenas e tão somente para tentar exorcizar a possibilidade de que isso aconteça conosco. Mas não serve de consolo, nem de vacina. O inferno continuam sendo os outros, os tais psicopatas que continuam circulando livremente por aí.

Ficar com a dor, passar recibo do luto, contorcer-se dias sem fim diante da perda injustificável, praguejar contra os deuses e o destino, pode ser nossa única salvação. Reservar um tempo para lamber as próprias feridas é a única rota de escape admissível.

Saber que o humano não abrange apenas um lado espiritualmente iluminado e gregário, mas chafurda também num poço sombrio e irracional, nos permite reavaliar nossos recursos internos e reequilibrar forças.

… Fui dormir mais cedo, exausta de pensar na lógica estapafúrdia do quadro pós-eleitoral e arrasada emocionalmente com esse festival de mediocridade e agonia democrática. Embora minha intuição já me avisasse há algumas semanas que ainda não era hora de celebrar a volta da racionalidade ao jogo político-ideológico, eu ainda tinha esperança de ver esse pessoal jogado na lata de lixo da história. Não deu…

Essas considerações me ocorrem ao analisar os resultados das eleições 2022. Até dá para sacar timidamente uma explicação para o crescimento de última hora de Jair Bolsonaro e a acachapante vitória de seus aliados no pleito para governadores do sudeste – e mais grave ainda para a Câmara Federal e o Senado. Se há um fator racional para justificar a inversão das preferências, ele tem um nome: Ciro Gomes. Graças ao fato de ter elegido Lula – e não Bolsonaro, como seria de se esperar – como seu único adversário, de forma a se oferecer como contraponto palatável, ele conseguiu desestabilizar o emocional dos eleitores que já se dispunham a fechar o nariz, ignorar suas reservas intelectuais e votar no PT, na tentativa desesperada de salvar a democracia tupiniquim. Colheu o que plantou: até o final de sua vida vai ser forçado a ruminar em casa os motivos inconscientes de sua raivosa batalha egóica. Em volta de sua tumba política, vão se juntar as vivandeiras e carpideiras nem-nem que apostaram mais uma vez na própria incorruptibilidade e superioridade intelectual/moral.

Até aí, dá para tentar, não sem esforço, entender. No entanto, como explicar a eleição de Damares, de Pazuello, de Mário Frias, de Carla Zambelli e principalmente de Ricardo Salles? Que justificativa moral terão se concedido as pessoas que enfrentaram enormes perdas nos últimos três anos, desde mortes de familiares por covid, desemprego, fome, não-acesso à saúde e à educação, até as terríveis enchentes e as queimadas na Amazônia? Serão os eleitores das classes C, D e E os culpados mais uma vez por impedir o avanço civilizatório em nosso país? Ou será que os evangélicos se consolidarão como os novos bodes expiatórios da brasilidade?

Ontem fui dormir mais cedo, exausta de pensar na lógica estapafúrdia do quadro pós-eleitoral e arrasada emocionalmente com esse festival de mediocridade e agonia democrática. Embora minha intuição já me avisasse há algumas semanas que ainda não era hora de celebrar a volta da racionalidade ao jogo político-ideológico, eu ainda tinha esperança de ver esse pessoal jogado na lata de lixo da história. Não deu. Esqueci que também votam os farialimers, os empresários do agronegócio, os coronéis com expertise no voto de cabresto, os grileiros e os garimpeiros, os CACs, os milicianos, os moralistas de plantão e os ressentidos de classe média.

Fechei os olhos sem querer para a divisão bicentenária de nossa sociedade em dois Brasis irreconciliáveis: o Brasil das elites urbanas do Sul e do Sudeste e o Brasil dos desassistidos dos rincões miseráveis do país. Porém, acima e além da incompreensão com a aposta na perpetuação do fascismo à brasileira, meu maior desalento se deu com a escolha dos integrantes do Legislativo.

Lembrei que, há mais de duas décadas, o Senado solicitou uma pesquisa de imagem ao instituto para o qual eu trabalhava. Montamos uma gigantesca equipe de pesquisadores quantitativos e qualitativos, mantivemos reuniões exaustivas sobre a melhor forma de abordar o eleitorado sem permitir que simpatias e antipatias para com senadores isolados interferissem na análise do coletivo, gastamos horas e horas no treinamento do pessoal de campo. Já na primeira fase do projeto-piloto colhemos um resultado estarrecedor: pouquíssimos brasileiros sabiam dizer para que serve um senador da República e que importância ele tem como contrapeso ao Executivo. Simplesmente não dava para avançar no entendimento das características ideais para ocupar um cargo federal ou para a melhoria da imagem do Senado. Tiro n’água total, o restante do projeto acabou sendo abortado.

A pergunta, então, é como acontece a escolha dos representantes do Congresso. Intimidados com a profusão de nomes e números, desinformados sobre o histórico político dos candidatos e distraídos pela disputa mais tensa para o cargo presidencial, como apontar os que poderiam contribuir de forma mais efetiva para um futuro promissor, livre do toma lá, dá cá? Se não se sabe a quais tarefas eles vão se dedicar, só resta então aos eleitores mais apartados do jogo identificar os nomes já conhecidos – e mais polêmicos – do cenário político atual, que não por coincidência também se destacaram no apoio explícito às teses amalucadas do presidente de plantão. Antiabortistas, misóginos, portadores de virilidade tóxica, racistas, homotransfóbicos e companhia bela se unem então para exorcizar o “perigo comunista” e reafirmar os valores de defesa da família, da vida, da propriedade, da pátria e de Deus. Ganha uma passagem só de ida para a Ucrânia quem conseguir vislumbrar uma forma eficaz de reverter esse quadro dantesco e peitar os invasores russos.

Tristemente, cabe perguntar aos que, como eu, não conseguem atinar com uma explicação ou justificativa minimamente aceitável: ATÉ QUANDO?

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 Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

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4 thoughts on “Algumas vezes é preciso não entender. Por Myrthes Suplicy Vieira

  1. Prezada. Nem sei se você vai ler isto aqui, mas é impossível discordar de tua citação inicial. Acrescentarei outra, de Clarice Lispector, que, na pele de Joana (em Perto do Coração Selvagem), refere-se assim a uma outra personagem: ‘Sobretudo, pensou ainda, compreende a vida porque não é suficientemente inteligente para não compreendê-la’. Das coisas mais penetrantes da alma humana que já li. Literariamente falando, é apenas lindo.

    Gostaria de chamar a atenção para algo que uma pesquisa de opinião pública raramente tem como enxergar: a resposta do ‘indeciso’ que intencionalmente ilude o entrevistador, provavelmente por vergonha de explicitar o que pensa. Mas, afinal, do que exatamente esse eleitor se envergonha? A comparar os números das pesquisas e os da votação, algo em torno de 8~9% do eleitorado votou no capitão, mas não declarara antes que o faria. Votou nele sabendo que se ele é um golpista de extrema direita, pretendente a ditador, que tenta a todo momento abalar a estabilidade das instituições reguladoras do Estado, que semeia ódio, incentiva violência, pratica ilegalidades de todos os tamanhos e consequências possíveis. Esse grupo enxerga bem o que faz, sabe que o capitão é um criminoso, que multiplicou o número de mortos durante a pandemia, que desrespeita tudo o que pareça pertencer ao gênero feminino, que promete metralhar petistas em particular, e opositores em geral, que quer ‘extirpar’ adversários da vida política; que elogia torturadores e assassinos, saúda milicianos, que ‘passa boiada’ sobre floresta necessária ao clima e à vida, que promete passar boiada ainda maior sobre o STF caso seja reeleito and so on. E, mesmo assim, mesmo sabendo de tudo isso – e sentindo vergonha por votar nele! -, simplesmente vai em frente e, sim, vota nele!

    Entendeu a miséria humana dessa situação, que vai muito além de apenas não querer eleger um outro partido político? Essa miséria não se encontra apenas naqueles que realmente acreditam no capitão e em seus propósitos (supostamente justificáveis, tais como ‘nossa liberdade’, ‘família cristã’, ‘pátria’, Deus e outras baboseiras reacionárias e moralistas). A miséria nacional, na sua pior parte, encontra-se especialmente naqueles que, cientes da perversão moral e do desvio legal que cometem, ainda assim apostam no crime, na crueldade, na destruição, no segregacionismo, no golpismo, na ditadura, na barbárie. Cientes do que fazem, envergonham-se diante de um entrevistador, mas não diante da urna na qual selam o pacto de destruição do que resta do país. Os bolsonaristas do primeiro tipo (os nele crentes, digamos) cabem inteiramente nas palavras de Lispector. São os toscos de pensamento que julgam tudo entender. Os do segundo tipo, no sentido contrário ao das palavras de Lispector, não compreendem nada apenas porque realmente desejam nada compreender além de sua própria estupidez limitante. São um contingente enorme de eleitores que pode decidir uma eleição presidencial, e que nenhuma pesquisa de opinião tem como perscrutar com precisão. Juntem-se a estes os omissos que decidem por omissão assumida e orgulhosa (como se isso significasse qualidade moral num ser humano…), por preconceito, por raiva pura e simples, por cegueira política, por miséria existencial e desumanidade grotesca, e teremos uma boa fotografia do que já chamei aqui de ‘levante dos ignorantes’.

    Confesso que me sinto muito pessimista com o que o dia 30 de outubro vai revelar. Tenho família no Brasil, assim como minha mulher. Tememos por nossos entes queridos. Na antevéspera do primeiro turno, meu concunhado foi hostilizado num restaurante chic em Porto Alegre porque usava – que audácia! – uma gravata vermelho-escura. Para não perder um importante almoço de negócios, teve de retirá-la. Foi chamado de ‘petista de merda’ por um valentão que, por óbvio, estava acompanhado de outros toscos da mesma seita verde-amarela. É o ‘Brasil do futuro’, que reemergirá orgulhoso das urnas para mais quatro anos de escuridão e terror. E. claro, para mais quatro anos de corrupção descarada.

    O triunfal levante dos Ignorantes. Esconda no fundo do teu guarda-roupa as tuas peças vermelhas. Serão as estrelas amarelas deste triste ‘Brasil acima de tudo’, com ‘Deus acima de todos’…

  2. Li (leio regularmente não só os comentários aos meus posts mas também todos os demais artigos), gostei e apoio integralmente o que você escreveu. Também eu estou profundamente pessimista com o que vai sair das urnas no final do mês. Tenho pesadelos diários com as manobras previsíveis do capetão, do centrão e do novo senado contra o STF, o meio ambiente/povos originários, a educação, cultura e saúde. No entanto, pressinto que não basta denunciar [a falta de] o caráter e a incompreensão dos que votaram em JB quanto à imagem externa do Brasil e o consequente desastre econômico que está por vir. É preciso escutar terapeuticamente os medos e incertezas que os fizeram cair nos braços do incendiário de última hora e apresentar propostas claras que mitiguem esse estado de ânimo. Minha intuição diz que é preciso deixar de lado o tema da corrupção (não há como disputar quem é o pior nesse quesito) e alertar para os verdadeiros perigos internos e externos para as áreas acima que muitos eleitores preferem não ver. Em tempo: Clarice Lispector é de longe minha autora preferida e, como Fernando Pessoa, tudo o que ela escreve demora décadas para ser entendido e absorvido.

    1. Cara colega de leituras de Clarice, de Pessoa (e de Chumbo Gordo). Agradeço pela atenção concedida a meu coment. Lisonjeia-me. Nesta semana, nem todas as notícias foram ruins. Depois de votar domingo, na segunda me pus novamente diante de uma urna – não eletrônica – para votar em Pierre Plamondon, candidato do Parti Québécois a Primeiro Ministro do Quebec. Apesar do voto não ser obrigatório por aqui, achamos que devíamos votar – ainda que apenas para não perder o costume, pois sabíamos que não elegeríamos Plamondon. François Legault, da Coalition Avenir Québec, terceira via quebequense, acabou reeleito. Formou um governo largamente majoritário, vai governar com tranquilidade por mais quatro anos, o que significa que poderá continuar fazendo quase tudo errado ou pela metade, e ninguém vai notar diferença alguma… Em todo caso, não chega a ser uma má notícia. Considerando que o Parti Conservateur du Québec apresentou seu próprio bolsonaro (meio desbotado, é verdade, pois é rasoavelmente educado, não manda ninguém enfiar nada pelo esfíncter, mas tem ideias quase paulo-guedianas na sua cabeça de vento), e levando em conta que teve o pior desempenho entre os cinco candidatos, quase dá pra comemorar. No mais, recebemos uma boa notícia do Brasil: nossas afilhadas de bat-mitzvah vêm passar o Réveillon conosco e devem ficar por aqui todo o mês de janeiro. A mais velha, que já pensa em universidade, parece alimentar um plano de estudar em Montreal, e os pais aprovam a ideia. Estamos bem alegres por isso. Por nossa vontade, nossas famílias inteiras estariam aqui. Cá entre nós, num país em que Lula tem de posar ao lado de freis franciscanos para mostrar que não é satanista, e o capitão tem de trocar pontapés com sua própria turma para provar que não faz parte da Maçonaria, a vida inteligente parece ter os dias contados. O Brasil parece um país em acelerada contagem regressiva. A dúvida é sobre se esse artefato mal montado explode ou dá chabu. Em todo caso, não devemos nos esquecer de que nem tudo está perdido, e não permitir que o capitão continue naquela poltrona já será de grande valia. Será que a gente consegue?

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