Bondades comprometedoras. Por Aylê-Salassié Filgueiras Quintão
RENÚNCIAS FISCAIS: BONDADES COMPROMETEDORAS
Nenhum candidato à Presidente da República do Brasil apresentou até agora proposta consistente, capaz de estabelecer limites e cobrar resultados efetivos da chamada “renúncia fiscal” do Estado, aquela isenção na cobrança de impostos, na concessão de subsídios e desonerações que, em 2022, deverá consumir R$ 371 bilhões. A aparente omissão induz a supor que o vencedor, seja quem for, continuará a fazer uso amplo da estratégia para governar.
São as “bondades”, que abrem para o próximo governo um buraco no Orçamento fiscal, da ordem de R$ 200 bilhões ou mais, já que o teto do déficit foi ultrapassado em muito, destruindo o próprio o teto.
Desde Delfim Neto, no Ministério do Planejamento (1979 a 1985), ouve-se falar na extinção desses privilégios. Paulo Guedes, quando assumiu o Ministério da Fazenda de Bolsonaro, uma de suas promessas era “reduzir as excepcionalidades”. Na sua gestão essas despesas subiram, entretanto, 49 por cento.
São privilégios conhecidos como “despesas fiscais” que somam desde a distribuição de recursos aos mais vulneráveis – 20,2 milhões de pessoas sem renda nenhuma ou insuficientes para subsistência, aos subsídios e desonerações fiscais beneficiando as grandes empresas, até a Zona Franca de Manaus (R$ 55,3 bilhões). Trata-se de algo aparentemente incontrolável e até, eleitoralmente, invisíveis.
No caso dos vulneráveis, o Auxílio Brasil deve consumir este ano R$ 90,55 bilhões. A previsão no Orçamento da União é de R$ 35,9 bilhões, uma diferença de R$ 54,6 bilhões. O cálculo considera o valor do benefício médio de R$ 415,00 por família. Contabilmente ainda não se falou nos R$ 600,00. Distributivista, a medida é elogiável. A estimativa leva em conta a inclusão de novas famílias elegíveis situadas nas linhas de pobreza ou em estado de penúria, previstas na Medida Provisória (MP) 1.061/2021, aprovada neste mês pelo Congresso Nacional.
Essas novas bondades irão impactar os limites mínimo das despesas obrigatórias, sobretudo no campo da saúde e da educação, porque não tem ainda fontes definidas. Estão em aberto no Orçamento cerca de R$ 106 bilhões. Igual valor pode ser provavelmente contabilizado também nas concessões de subsídios e desobrigação de recolhimento de impostos. Em ano eleitoral, tudo é possível. A conivência aí é ampla.
Na campanha política esses temas específicos são eventuais. Todos os contornam, porque tem expectativa de conseguir uma avalanche de votos nessas frentes de bondades do Estado. Os candidatos preferem concentrar-se num compromisso vago com a morosa “reforma tributária”, com a “tributação dos lucros e dividendos” ou anunciando um “programa de ajuste fiscal”, apresentado como austeridade, que, supostamente, irá cortar os malefícios do assistencialismo e do filhotismo.
Mesmo sem entender o que está sendo prometido, a população absorve essa retórica como algo positivo, como se estivesse vindo por aí um novo programa contra o desperdício, contra os privilégios e contra a corrupção: uma mágica moralizadora. A Dilma foi configurada na campanha como uma “gerentona”. Deu no que deu. Na linguagem popular é uma espécie de figura lúdica e cheia de promessas. Manipulações do imaginário coletivo que permitem ainda conduzir uma agenda de igualdades relativas de direitos.
Por sua vez o espírito que conduz as renúncias fiscais não tem identidade ideológica. É uma alavancagem do desenvolvimento, pela concessão de subsídios e desonerações a um grupo de empresas que, de fato, conduzem – não sozinhas- o PIB. As chamadas “empresas campeãs” sobreviventes estão por aí, rondando as candidaturas. Ao lado das estatais, ou concorrendo com elas, as “campeãs” funcionavam como o braço executivo da gestão no governo do PT: uma confusão neoliberal que confundia artificiosamente o público e o privado. Quase quebraram o BNDES, deixando o Tesouro sem os fundilhos. (50)
Ora, convenhamos, as “empresas campeãs” antes de se transformarem em uma política pública, era apenas uma tese de doutorado em Economia do jovem professor Luciano Coutinho, na Universidade de Cornell , nos Estados Unidos, que se propunha a transformar um grupo de empresas nacionais selecionadas, pelo governo, em líderes de mercado, criando gigantes corporativos, similares aos que se formaram em países como EUA, Reino Unido, Japão e China. Era preciso dar a essas gigantes privadas brasileiras condições de competir no mercado internacional. Por extensão, serviriam de exemplo para fomentar e alavancar o sistema produtivo nacional e, por conseguinte, do mercado de trabalho.
Receberam atenção especial os segmentos petroquímicos, de papel e celulose, os frigoríficos, a siderurgia, o suco de laranja e a produção de cimento. Foram privilegiadas com subsídios, desonerações fiscais e volumosos financiamentos a JBS, a BRF, a Marfrig, a Lácteos Brasil, a EBX, a Oi, a Fibria. O BNDES investiu R$ 1,2 trilhão nessas empresas “amigas”. Os privilégios fiscais fizeram-nas distanciarem-se muito das demais empresas no País que cumprem regularmente suas obrigações tributárias. Chegaram a um ponto de não retorno que a maioria entrou em estado de falência, quase quebrando o Banco e o próprio Brasil.
O setor industrial e de exportação – incluem-se hoje o agronegócio e os serviços – foram e tem sido os mais beneficiados com as renúncias fiscais. Um marco importante foi a criação da a Lei de Inovação (Lei 10.973/2004) e a chamada Lei do Bem (Lei 11.196/2005) que estendiam as isenções do PIS e do COFINS, desonerações amplas. Com o agravamento da crise mundial, o governo vê a necessidade de promover medidas que impulsionem a demanda agregada. Daí a redução do IRRF, do IPI para automóveis e do IOF sobre o crédito ao consumidor.
O certo é que as renúncias fiscais somadas a partir de 2018 poderão atingir, em 2023, a casa dos R$ 450 bilhões. São apoios caros e transferências de renda desiguais, que ajudam a manter não apenas a concentração da riqueza, apresentando benefícios sociais duvidosos e para a Nação. Ninguém se habilita a dar um corte nisso, ao invés promete-se vagamente um “ajuste fiscal”. Tudo pode ser escondido ou ignorado, mas será quase impossível não se fazer uma reavaliação rigorosa dos resultados das “despesas fiscais” antes de assumi-las ou de criar novos encargos para o Estado. Aí está uma grande inflexão para ser decifrada.
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Aylê-Salassié F. Quintão – Jornalista, professor, doutor em História Cultural. Vive em Brasília. Autor de “Pinguela: a maldição do Vice”. Brasília: Otimismo, 2018
E autor de Lanternas Flutuantes: